A quarta reportagem publicada pelo ISA sobre a
proposta de revogação do Código Florestal aponta algumas das ameaças aos
manguezais contidas no texto aprovado pela Câmara. O projeto oficializa
a “política do fato consumado” ao premiar os desmatadores desses
ecossistemas. Os mangues são fundamentais para a estabilidade da zona
costeira e berçário de inúmeras espécies que são fonte de alimentação e
renda para populações litorâneas
Aprovado pela Câmara no dia 25/4, o projeto que pretende revogar o Código Florestal abre caminho para ampliar a degradação e a ocupação dos manguezais brasileiros, responsáveis pela manutenção dos ciclos de vida e a estabilidade da zona costeira brasileira.
De acordo com o parágrafo 2º do artigo 8º, quem desmatar ou degradar um mangue em zona urbana não será punido ou obrigado a recuperá-lo, mas ganhará como prêmio a regularização fundiária do local.
Os manguezais estabilizam e protegem a costa da força das águas e do vento. Rio Curumbataú, Barra do Cunhaú (RN) |
Com as modificações feitas pelos deputados no texto, o projeto separa artificialmente os “apicuns”, também chamados de “salgados”, dos manguezais, o que abre brecha para sua exploração. Os dois primeiros são parte integrante dos manguezais e locais preferidos para produção de sal e camarões.
Os mangues são berçário e habitat de um grande conjunto de espécies marinhas e terrestres e estratégicos para a sobrevivência das populações litorâneas.
A degradação desses ambientes pode ter como impactos a erosão costeira, comprometimento do ciclo reprodutivo de vários animais, redução das fontes de alimento, assoreamento de canais navegáveis, bacias e lagoas (leia mais abaixo).
Ecossistema é elo fundamental nos ciclos de vida de espécies terrestres e marinhas. Reserva Extrativista do Mandira, Cananéia (SP) |
Os mangues também são considerados “áreas úmidas”, paisagens que deveriam receber proteção especial, segundo os cientistas, mas que também estão ameaçadas pela revogação do Código Florestal (saiba mais).
Sem embasamento científico
Para Yara Schaeffer Novelli, do Instituto Oceanográfico da USP (Universidade de São Paulo), o texto aprovado pela Câmara não tem embasamento científico.
Não há distinção entre “salgados” e “apicuns” e separá-los dos manguezais é um equívoco conceitual, aponta Novelli e outros especialistas em artigo da publicação “Código Florestal e a Ciência: o que nossos legisladores ainda precisam saber”, do Comitê Brasil em Defesa das Florestas (veja documento).
“Ao separar salgados e apicuns é como se a lei dissesse que o quarto não integra a casa”, diz Raul Silva Telles do Valle, coordenador adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA.
Mais de um milhão de pessoas dependem da conservação dos manguezais para a sua subsistência. Ilha Comprida (SP) |
O apicum é a parte mais interna do manguezal, atingida apenas ocasionalmente pelas marés. Por causa do estresse hídrico fruto dessa condição e da alta salinidade do solo, ele é desprovido de árvores, o que faz muitos acreditarem que é pobre em vida e tem menor valor ecológico.
Essas áreas, no entanto, têm função essencial, pois fornecem os nutrientes usados para sintetizar a matéria orgânica que sustenta os ciclos bioquímicos e as cadeias alimentares dos manguezais e de outros ecossistemas costeiros. Também são habitat para alguns animais, como os caranguejos.
“Em geral, produtores de sal e camarão não fazem um uso sustentável desses ecossistemas”, denuncia Novelli.
Quando despejados no meio ambiente, os insumos usados na carcinicultura podem disseminar doenças e provocar a morte de animais como peixes e caranguejos, base da dieta de muitas populações litorâneas.
Carcinicultura é hoje uma das principais ameaças aos manguezais. Fazenda de camarão sobre manguezal e apicum em Canguaretama (RN) |
Yara Novelli alerta ainda que, em geral, as condições de trabalho nas salinas a céu aberto e fazendas de camarão instaladas nos manguezais são precárias e os empregos gerados são poucos e temporários. Uma resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) de 2002 vedou a carcinicultura nesses ecossistemas.
Eles também estão protegidos pela Convenção de Áreas Úmidas de Ramsar, referendada pelo Brasil. Segundo a Constituição, a Zona Costeira e Marinha, que inclui os mangues, é patrimônio nacional. Apesar disso, apenas 3% dessa região está protegida por UCs (Unidades de Conservação) no Brasil.
Lobby
A discussão do assunto foi alvo de um lobby poderoso na tramitação da reforma do Código Florestal.
Parlamentares nordestinos não se contentaram com a legalização de atividades econômicas implantadas até julho de 2008 e a regularização de novas ocupações em zona urbana previstas no texto original da Câmara e mantidas no do Senado para os manguezais.
Carcinicultura pode provocar a morte de várias espécies. Aterro e preparação de tanques para fazenda de camarões sobre apicum em Itapissuma (PE). |
Senadores como Agripino Maia (DEM-RN) e Eunício Oliveira (PMDB-CE) mobilizaram-se em defesa da ampliação da produção de sal e camarões nessas áreas.
Os relatores no Senado, Luiz Henrique (PMDB-SC) e Jorge Viana (PT-AC), mantiveram-nas como APPs (Áreas de Preservação Permanente), mas, para atender as pressões, criaram um capítulo específico para os "salgados" e "apicuns".
Assim, o apicum deixou de ser considerado APP e sua ocupação ficou limitada a 10% de sua extensão total nos estados da Amazônia Legal e 35% nos demais, fora as propriedades consolidadas até julho de 2008.
Na volta à Câmara, todo o capítulo foi rejeitado, mas a diferenciação incorreta entre "salgados" e "apicuns" permaneceu no texto. Pela interpretação defendida pelos carcinicultores, isso permitiria que eles pudessem ser explorados sem limitações, já que não seriam mais legalmente parte dos manguezais e, portanto, não estariam protegidos.
“Seguramente haverá uma grande disputa judicial sobre esse assunto", aponta Raul do Valle. “O projeto diz que os manguezais são protegidos 'em toda sua extensão'. Portanto, no meu entendimento, os apicuns e salgados também estão protegidos, pois são parte de um todo. Interpretar o contrário seria o mesmo que dizer que uma parede branca é preta apenas porque a lei diz que é”, afirma.
Proposta de deputados pretende legalizar ocupações urbanas em mangues sem punir seus desmatadores. Favela sobre mangue em Recife (PE) |
Para saber mais sobre os mangues, acesse o site do Instituto Bioma Brasil e o Blog Caos&Clorofila.
ISA, Oswaldo Braga de Souza.
www.socioambiental.org
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