sábado, 12 de maio de 2012

Texto aprovado por deputados abre caminho para degradação de manguezais

A quarta reportagem publicada pelo ISA sobre a proposta de revogação do Código Florestal aponta algumas das ameaças aos manguezais contidas no texto aprovado pela Câmara. O projeto oficializa a “política do fato consumado” ao premiar os desmatadores desses ecossistemas. Os mangues são fundamentais para a estabilidade da zona costeira e berçário de inúmeras espécies que são fonte de alimentação e renda para populações litorâneas



Aprovado pela Câmara no dia 25/4, o projeto que pretende revogar o Código Florestal abre caminho para ampliar a degradação e a ocupação dos manguezais brasileiros, responsáveis pela manutenção dos ciclos de vida e a estabilidade da zona costeira brasileira.

De acordo com o parágrafo 2º do artigo 8º, quem desmatar ou degradar um mangue em zona urbana não será punido ou obrigado a recuperá-lo, mas ganhará como prêmio a regularização fundiária do local.


Os manguezais estabilizam e protegem a costa da força das águas e do vento. Rio Curumbataú, Barra do Cunhaú (RN)




Com as modificações feitas pelos deputados no texto, o projeto separa artificialmente os “apicuns”, também chamados de “salgados”, dos manguezais, o que abre brecha para sua exploração. Os dois primeiros são parte integrante dos manguezais e locais preferidos para produção de sal e camarões.

Os mangues são berçário e habitat de um grande conjunto de espécies marinhas e terrestres e estratégicos para a sobrevivência das populações litorâneas.

A degradação desses ambientes pode ter como impactos a erosão costeira, comprometimento do ciclo reprodutivo de vários animais, redução das fontes de alimento, assoreamento de canais navegáveis, bacias e lagoas (leia mais abaixo).


Ecossistema é elo fundamental nos ciclos de vida de espécies terrestres e marinhas. Reserva Extrativista do Mandira, Cananéia (SP)


Os mangues também são considerados “áreas úmidas”, paisagens que deveriam receber proteção especial, segundo os cientistas, mas que também estão ameaçadas pela revogação do Código Florestal (saiba mais).


Sem embasamento científico

Para Yara Schaeffer Novelli, do Instituto Oceanográfico da USP (Universidade de São Paulo), o texto aprovado pela Câmara não tem embasamento científico.

Não há distinção entre “salgados” e “apicuns” e separá-los dos manguezais é um equívoco conceitual, aponta Novelli e outros especialistas em artigo da publicação “Código Florestal e a Ciência: o que nossos legisladores ainda precisam saber”, do Comitê Brasil em Defesa das Florestas (veja documento).

“Ao separar salgados e apicuns é como se a lei dissesse que o quarto não integra a casa”, diz Raul Silva Telles do Valle, coordenador adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA.


Mais de um milhão de pessoas dependem da conservação dos manguezais para a sua subsistência. Ilha Comprida (SP)


O apicum é a parte mais interna do manguezal, atingida apenas ocasionalmente pelas marés. Por causa do estresse hídrico fruto dessa condição e da alta salinidade do solo, ele é desprovido de árvores, o que faz muitos acreditarem que é pobre em vida e tem menor valor ecológico.


Essas áreas, no entanto, têm função essencial, pois fornecem os nutrientes usados para sintetizar a matéria orgânica que sustenta os ciclos bioquímicos e as cadeias alimentares dos manguezais e de outros ecossistemas costeiros. Também são habitat para alguns animais, como os caranguejos.

“Em geral, produtores de sal e camarão não fazem um uso sustentável desses ecossistemas”, denuncia Novelli.

Quando despejados no meio ambiente, os insumos usados na carcinicultura podem disseminar doenças e provocar a morte de animais como peixes e caranguejos, base da dieta de muitas populações litorâneas.


Carcinicultura é hoje uma das principais ameaças aos manguezais. Fazenda de camarão sobre manguezal e apicum em Canguaretama (RN)




Yara Novelli alerta ainda que, em geral, as condições de trabalho nas salinas a céu aberto e fazendas de camarão instaladas nos manguezais são precárias e os empregos gerados são poucos e temporários. Uma resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) de 2002 vedou a carcinicultura nesses ecossistemas.

Eles também estão protegidos pela Convenção de Áreas Úmidas de Ramsar, referendada pelo Brasil. Segundo a Constituição, a Zona Costeira e Marinha, que inclui os mangues, é patrimônio nacional. Apesar disso, apenas 3% dessa região está protegida por UCs (Unidades de Conservação) no Brasil.

Lobby

A discussão do assunto foi alvo de um lobby poderoso na tramitação da reforma do Código Florestal.

Parlamentares nordestinos não se contentaram com a legalização de atividades econômicas implantadas até julho de 2008 e a regularização de novas ocupações em zona urbana previstas no texto original da Câmara e mantidas no do Senado para os manguezais.


Carcinicultura pode provocar a morte de várias espécies. Aterro e preparação de tanques para fazenda de camarões sobre apicum em Itapissuma (PE).




Senadores como Agripino Maia (DEM-RN) e Eunício Oliveira (PMDB-CE) mobilizaram-se em defesa da ampliação da produção de sal e camarões nessas áreas.

Os relatores no Senado, Luiz Henrique (PMDB-SC) e Jorge Viana (PT-AC), mantiveram-nas como APPs (Áreas de Preservação Permanente), mas, para atender as pressões, criaram um capítulo específico para os "salgados" e "apicuns".

Assim, o apicum deixou de ser considerado APP e sua ocupação ficou limitada a 10% de sua extensão total nos estados da Amazônia Legal e 35% nos demais, fora as propriedades consolidadas até julho de 2008.

Na volta à Câmara, todo o capítulo foi rejeitado, mas a diferenciação incorreta entre "salgados" e "apicuns" permaneceu no texto. Pela interpretação defendida pelos carcinicultores, isso permitiria que eles pudessem ser explorados sem limitações, já que não seriam mais legalmente parte dos manguezais e, portanto, não estariam protegidos.

“Seguramente haverá uma grande disputa judicial sobre esse assunto", aponta Raul do Valle. “O projeto diz que os manguezais são protegidos 'em toda sua extensão'. Portanto, no meu entendimento, os apicuns e salgados também estão protegidos, pois são parte de um todo. Interpretar o contrário seria o mesmo que dizer que uma parede branca é preta apenas porque a lei diz que é”, afirma.


Proposta de deputados pretende legalizar ocupações urbanas em mangues sem punir seus desmatadores. Favela sobre mangue em Recife (PE)





Qual a importância dos manguezais?

O Brasil possui 1,2 milhão de hectares de manguezais, o que representa a terceira maior extensão desse ecossistema no mundo (7% do total) e 50% na América Latina.

Os manguezais são fundamentais para a manutenção dos ecossistemas costeiros e dos serviços ambientais oferecidos por eles. São fonte de alimentação, habitat e local de reprodução de aves migratórias, peixes, mamíferos, algas e micro-organismos.

“[Se a proposta da Câmara não for vetada] o prejuízo em cima das nossas comunidades costeiras será muito grande”, alerta Yara Novelli.

Ela informa que a subsistência de mais de um milhão de pescadores artesanais, entre outras comunidades tradicionais, depende dos mangues e está ameaçada com a nova legislação. Cerca de 70% da pesca comercial na zona costeira depende desses ambientes em alguma etapa do ciclo de vida dos peixes.

Ao fixar sedimentos e poluentes, os manguezais funcionam como filtros biológicos para as águas costeiras. Também são importantes para a estabilidade da costa ao protegê-la da força das marés, ventos e tempestades.

A função de fixador de carbono desses ambientes foi reconhecida recentemente e hoje eles são considerados a mais rica floresta tropical em carbono, tendo, portanto, papel importante na regulação do clima.

As maiores pressões sofridas pelos manguezais são a poluição, ocupação urbana descontrolada, a ampliação de portos, pesca predatória, a produção de sal e principalmente de camarão.

Nos últimos 25 anos, 50 mil hectares de mangues foram destruídos no Brasil. Pesquisas indicam que a taxa de desmatamento dessa vegetação seguirá aumentando.
O que são os manguezais?

Os manguezais estão localizados sobre depósitos sedimentares costeiros, em solos lamosos, argilosos ou arenosos. Apresentam-se sob três formas: “mangue”, “apicum” e “lavado”.
O “mangue” propriamente dito é atingido por águas estuarinas ou marinhas e tem cobertura vegetal típica de espécies arbóreas adaptadas a condições inóspitas. É um exportador de matéria orgânica que fertiliza a si próprio e outros ecossistemas costeiros.

Foto: Clemente Coelho Jr
(clique para ampliar)


O “apicum”, às vezes chamado de “salgado”, só existe associado ao mangue, constituindo sua porção mais interna (apesar de existirem mangues sem apicum ou salgado). É atingido somente pela maré cheia. Pode ser um ambiente hipersalino, o que limita a existência de espécies arbóreas. Plantas rasteiras e alguns animais bem adaptados podem sobreviver nessas áreas, que são uma importante reserva de nutrientes, além de amortecer as marés e ajustar todo o manguezal a elas. (Na foto abaixo, o apicum está na parte esquerda; à direita, o manque propriamente dito).

Foto: Clemente Coelho Jr
(Clique para ampliar)


O “marisma”, confundido com o “salgado” na proposta de revogação do Código Florestal, é um ecossistema encontrado nas zonas tropical ou intertropical na faixa de entremarés de regiões costeiras abrigadas, sendo delimitado pela amplitude da maré. No marisma, a cobertura vegetal limita-se a gramíneas adaptadas à salinidade semelhante à da água do mar ou dos estuários. (O marisma é a gramínea destacada na imagem abaixo).


Foto: Clemente Coelho Jr
(Clique para ampliar)


O “lavado” é o ambiente do manguezal mais exposto à inundação, com solo lodoso ou areno-lodoso exposto e desprovido de cobertura vegetal. Tem a capacidade de atenuar a força das marés.
Fonte: “Alguns impactos do PL 30/2011 sobre os manguezais brasileiros”. Yara Shaeffer Novelli, André Scarlate Rovai, Clemente Coelho Jr., Ricardo Palamar Menghini e Renato de Almeida. Código Florestal e a Ciência: o que nossos legisladores ainda precisam saber. Comitê Brasil em Defesa das Florestas.


Para saber mais sobre os mangues, acesse o site do Instituto Bioma Brasil e o Blog Caos&Clorofila.




ISA, Oswaldo Braga de Souza.

www.socioambiental.org

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