“Não
há dúvidas de que os principais obstáculos que entravam a realização da
reforma agrária no Brasil se localizam em duas esferas: na estrutura
política e no sistema judiciário brasileiro”, destaca o engenheiro
agrônomo
“A questão agrária brasileira não pode
ser relegada a um segundo plano quando se definem e se implementam
políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza, seja ela
extrema ou qualquer outra expressão que se queira utilizar”. É com essa
declaração que Lauro Mattei retoma o debate da reforma
agrária e assegura que, embora o tema tenha ficado esquecido nos últimos
vinte anos, ele deve retornar à agenda política do país, pois continua
sendo “um instrumento decisivo para alterar o poder político rural que
se impõe através propriedade da terra”.
Estudioso da temática há mais de 25
anos, o engenheiro agrônomo e professor da Universidade Federal de Santa
Catarina acompanha o desenvolvimento das famílias que vivem no meio
rural e diz que a má distribuição da terra ainda dificulta o
desenvolvimento da agricultura familiar no país. “A pobreza rural tem
sua maior expressão nos espaços geográficos dominados pelos latifúndios,
locais onde se observam elevados índices de concentração da terra”,
aponta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line,
ele destaca ainda que os problemas da distribuição de terra são
históricos, de ordem política e jurídica. “A atrofia da ordem jurídica
sempre impediu que processos reformadores avançassem no Brasil, o que
facilitou a constituição de uma das sociedades mais desiguais do mundo”.
E dispara: “Particularmente entendo que um país com mais de 90 milhões
de hectares de terras improdutivas e com mais de 4 milhões de famílias
de sem terras, além de apresentar índices de desigualdades econômicas e
sociais alarmantes, não pode prescindir do uso de um instrumento eficaz –
como é o caso da reforma agrária – para tentar reverter este cenário,
seguindo o exemplo de muitos países que hoje são considerados
desenvolvidos”.
Lauro Mattei é graduado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Santa Catarina, possui especialização em Políticas Públicas pela Universidade do Texas. Cursou doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e pós-doutorado na Universidade de Oxford. É professor associado dos cursos de graduação e de pós-graduação em Ciências Econômicas e do PPG de Administração da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Também trabalha como pesquisador do OPPA-CPDA-UFRRJ. Confira a entrevista.
Lauro Mattei é graduado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Santa Catarina, possui especialização em Políticas Públicas pela Universidade do Texas. Cursou doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e pós-doutorado na Universidade de Oxford. É professor associado dos cursos de graduação e de pós-graduação em Ciências Econômicas e do PPG de Administração da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Também trabalha como pesquisador do OPPA-CPDA-UFRRJ. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a estimativa da população que vive no meio rural brasileiro?
Lauro Mattei – Antes de
apresentar alguns dados cabalísticos sobre a população que atualmente
habita o meio rural do país, entendo ser necessária uma breve
recuperação do processo histórico que culminou em uma das
maiores transformações demográficas em um curto espaço de tempo de que
se tem registro na história mundial.
Assim, é importante recordar que, ao se
iniciar a industrialização efetiva do país (década de 1950), a imensa
maioria dos brasileiros (mais de 70%) residia nas áreas rurais. Menos de
60 anos depois ocorreu uma inversão total desses percentuais, sendo que
os dados oficiais recentemente divulgados revelam a existência de uma
população majoritariamente domiciliada em áreas urbanas. Dessa forma, o
Brasil é um caso excepcional de transformação da situação domiciliar em
todo o mundo, não somente em termos da variável tempo, mas
fundamentalmente em função da magnitude desse processo. Nesse sentido,
entendo ser quase impossível compreender adequadamente a conformação
urbana atual do país e todas as mazelas nela representada se não
considerarmos os efeitos explicitados por esse fenômeno demográfico.
É nessa perspectiva que tratarei a
dimensão demográfica do meio rural atual, chamando atenção que há, no
mínimo, duas perspectivas analíticas. A primeira decorre de
interpretações oriundas dos dados e estatísticas oficiais. Nesse caso, é
sempre bom lembrar a forma com que essas informações são geradas. Mas
antes de adentrar nessa essa questão delicada, gostaria de ressaltar que
o Brasil tem um dos melhores sistemas de geração de estatísticas do
mundo, não deixando nada a desejar em relação aos sistemas existentes em
países como França, Inglaterra e Estados Unidos.
Dinâmica populacional
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é
o órgão oficial que há muitas décadas vem fazendo o acompanhamento da
dinâmica populacional do país. A cada dez anos são realizados os Censos
Demográficos, que nada mais são do que uma fotografia momentânea da
população residente nas áreas urbanas e rurais. E aqui aparece a questão
de fundo, uma vez que a definição do que é “área urbana” e o que é
“área rural” não é uma prerrogativa do IBGE, mas sim
uma definição político-administrativa das prefeituras municipais. Assim,
a cada decênio cabe ao IBGE apenas atualizar as áreas censitárias com
base nas informações fornecidas pelas administrações municipais. É nesse
momento que – em função de interesses diversos – muitas informações
administrativas não correspondem com a realidade.
Essa questão vem sendo amplamente
discutida pela literatura especializada, mesmo que ainda não tenha sido
incorporada pela metodologia oficial. Apenas destaca-se que, a partir do
Censo Demográfico de 1991, foram criadas novas categorias censitárias
que buscam atenuar os efeitos perversos das definições meramente
administrativas.
É dessa forma que o Censo Demográfico de
2010 mostrou a conformação de uma sociedade brasileira eminentemente
urbana, em que aproximadamente 85% do total da população reside em áreas
consideradas administrativamente como sendo “urbanas”. Isso implica que
a população rural se situava ao redor de 30 milhões de pessoas.
Mudanças em curso
A segunda perspectiva analítica
considera um conjunto de mudanças em curso no espaço rural, com destaque
para as novas formas de uso dos recursos naturais, em que o rural passa
a ser visto não apenas como local de produção agrícola, mas também para
o aumento das relações de proximidade entre campo e cidade a partir de
uma heterogeneidade de situações que se ampliam e para as relações mais
interativas entre os dois meios geográficos – seja através de novas
atividades produtivas que geram novas fontes de renda, seja através de
movimentos pendulares de retorno no sentido urbano rural.
Com isso emergiram diversas metodologias
alternativas para se delimitar o espaço rural e, consequentemente, a
população que dele faz parte. Assim, com base em diversos critérios que
também vêm sendo utilizados em outros países (áreas que não recebem os
reflexos de regiões metropolitanas; municípios de pequeno porte; e áreas
que possuem baixa densidade demográfica), é possível estimar que a
população rural atual esteja ao redor de 50 milhões de pessoas, ou seja,
quase o dobro daquela contabilizada pelo último Censo Demográfico.
IHU On-Line – O êxodo rural continua sendo um fenômeno presente no país?
Lauro Mattei – O êxodo rural assume
atualmente uma característica bem distinta daquela verificada durante o
período de modernização da agricultura brasileira. Naquela época (anos
de 1960 a 1980), ocorreu um deslocamento massivo da população rural em
direção aos centros urbanos em praticamente todas as regiões do país.
Esse processo tinha duas vertentes básicas: por um lado, as
transformações produtivas na própria agricultura, com a incorporação de
modernas máquinas e equipamentos agrícolas e uso intensivo dos insumos
químicos, especialmente dos agrotóxicos, e, por outro, a própria
industrialização em curso no país que demandava mão de obra em escala
ascendente.
A grande crise econômica vivida pelo
país a partir da década de 1980 afetou fortemente o setor industrial,
com efeitos negativos sobre a possibilidade de alocação da mão de obra
rural. Mesmo após a estabilização da economia e recuperação das
atividades industriais a partir da década de 1990, a possibilidade de
alocação da força de trabalho oriunda das áreas rurais no setor
industrial continuou limitada. Isso, porém, devido a um novo fator: a
exigência cada vez maior de qualificação profissional.
Como as portas estão cada vez mais
fechadas no setor industrial, desviou-se o fluxo da população rural em
direção ao setor de serviços. Todavia, como esse é um movimento complexo
que envolve o conjunto dos trabalhadores, não há espaço para todos.
Decorre daí as taxas de desemprego, subemprego e o trabalho precário e
informal, fatos que mantêm uma parcela expressiva da população em estado
de pobreza e miséria, tanto no campo como nas cidades.
Situações distintas
Especificamente no meio rural ocorrem
situações distintas. Por um lado, a modernização avança em vários
setores, particularmente naqueles que estão sendo impulsionados pelo
atual “boom internacional das commodities”. O problema está no fato de
que são justamente esses setores que menos ocupam gente, uma vez que o
processo produtivo é quase todo químico e mecânico. Por outro lado, o
setor da agricultura familiar – por ter ficado por longo tempo sem ser
priorizado pelas políticas governamentais – ainda é incapaz de gerar uma
dinâmica socioeconômica que consiga absorver toda a população rural,
especialmente em áreas que apresentam limitações histórico-estruturais,
como é o caso da imensa região do Semiárido.
Mas existem outras razões que também
explicam o êxodo rural em alguns estados e setores de atividades
produtivas. Vou apresentar apenas dois exemplos regionalmente
antagônicos, mas que fazem parte de um mesmo modo de produção. No
primeiro exemplo, destaca-se a região de integração de suínos e aves no Oeste de Santa Catarina.
Sabe-se que, com a reestruturação produtiva dos anos de 1990, as
grandes empresas agroindustriais redefiniram suas plataformas produtivas
visando ampliar a competitividade. Com isso o processo de integração se
tornou verticalizado e passou-se a exigir escalas de produção a que
parcelas expressivas de agricultores familiares – antes integrados – não
conseguiram mais atender. A essas parcelas restou apenas o caminho da
mudança domiciliar, fato este amplamente documentado pelos estudos
demográficos catarinenses.
O segundo exemplo vem das regiões
produtoras de frutas frescas que abastecem o mercado internacional. Além
de esse processo estar cada vez mais assentado em sistemas produtivos
ancorados na química e na mecânica, um fato novo passou a comandar o
setor: a concentração e centralização do capital. Com isso pequenos
produtores com dificuldades de competir nesses mercados acabam vendendo
suas terras. Como o nível de geração de trabalho nesse setor é
relativamente baixo, resta-lhes apenas o caminho da migração, geralmente
em direção às cidades visando buscar novas oportunidades de reprodução
social.
Em síntese, o êxodo rural continua
existindo no país, porém sua magnitude é totalmente distinta dos
períodos anteriores, bem como sua explicitação ocorre distintamente em
cada espaço geográfico do país.
IHU On-Line – Quais as políticas
públicas necessárias para mudar essa situação do meio rural do país e
quais os principais desafios da conjuntura atual do meio rural?
Lauro Mattei – Há exatamente 25 anos
(1987) quando iniciei minha carreira profissional como assessor
dos movimentos sociais e sindicais rurais, discutia-se um conjunto de
políticas de desenvolvimento rural que fosse capaz de articular as
esferas da estrutura agrária, da produção e da comercialização
agropecuária com políticas voltadas ao desenvolvimento humano
dos trabalhadores rurais. Ao longo desse período são inegáveis os
avanços nessa direção. Por exemplo, a extensão dos benefícios da
previdência social à população rural representou um avanço
extraordinário em termos de reconhecimento, por parte do Estado
brasileiro, de uma parcela da população trabalhadora que estava excluída
até aquele momento dos mesmos benefícios sociais auferidos pelos demais
setores da sociedade.
E qual era o argumento que as forças
conservadoras (rurais, urbanas, mídia, finanças, acadêmicos, etc.)
utilizaram no início dos anos de 1990 para tentar impedir essa medida
elementar de cidadania? Afirmavam que a Previdência Social iria quebrar!
Vejam só a hipocrisia brasileira, pois enquanto todos os meses eram
transferidos bilhões de dólares do conjunto da sociedade para setores
específicos, particularmente para a banca, um simples salário mínimo
para uma pequena parcela da população virou o pandemônio durante anos.
Hoje está fartamente documentado que a extensão da previdência social
aos trabalhadores rurais não somente não quebrou a previdência como foi
fundamental para recuperar a economia de uma imensa quantidade de
pequenos municípios no interior do país.
A cantilena de sempre
A cantilena de sempre
Da mesma forma, o debate sobre a
necessária mudança da estrutura agrária do país continua sendo
secularmente impedido por essas mesmas forças conservadoras. Continuamos
sendo um dos países mais injustos ao apresentar uma das maiores taxas
de concentração de terra do mundo.
Na mesma toada, recentemente começaram a
surgir reações contrárias ao apoio governamental à produção familiar,
que representa mais de 80% dos estabelecimentos agropecuários do país.
Mesmo que os argumentos sejam refinados, a intenção é a mesma cantilena
de sempre: o governo está jogando dinheiro fora ao incentivar a
agricultura familiar, pois ela não é competitiva para atender aos
desafios internacionais do país. No fundo, esse argumento é uma reação à
possibilidade legal (Lei da Agricultura Familiar) de
se iniciar um processo mais democrático de transferência dos recursos
públicos para todos os setores produtivos rurais do país.
Vejamos como essa argumentação aparece
nos subterrâneos dos orçamentos anuais destinados à função agricultura.
No ano de 2010, por exemplo, a agricultura familiar recebeu ao redor de
15 bilhões de reais, enquanto o setor patronal obteve aproximadamente
100 bilhões. Agora vejamos os dados do Ministério da Fazenda do mês de
julho de 2011 sobre a dívida agrícola. Essa dívida atingiu naquele mês
cerca de 160 bilhões de reais, sendo a agricultura familiar responsável
por menos de 30 bilhões desse total. Talvez essas cifras expliquem por
que a “bancada ruralista” sempre age de forma coesa.
Em síntese, o problema me parece estar
menos na existência de políticas públicas – afinal existem dezenas delas
direcionadas para o meio rural atualmente – e mais no sentido da
ineficácia dessas políticas em promover mudanças profundas nas
estruturas econômica e política que persistem nas áreas rurais e que
acabam subjugando os interesses do conjunto da sociedade aos interesses
de uma pequena elite agrária cada vez mais articulada às estruturas do
comércio e das finanças internacionais. Os episódios recentes sobre a
definição de uma legislação ambiental condizente com os desafios do
século XXI (Código Florestal) é o exemplo mais acabado dessa estrutura
arcaica de poder político agrário que se explicita no Congresso
Nacional.
IHU On-Line – A reforma agrária continua relevante no contexto atual do país? Por quê?
Lauro Mattei – É importante recordar que
ocorreu um debate clássico sobre a questão agrária brasileira nas
décadas de 1950 e 1960 envolvendo os principais pensadores do país, ao
mesmo tempo em que um movimento social (Ligas Camponesas)
atuava no sentido de colocar a temática da reforma agrária no centro da
agenda pública nacional. Com a implantação do regime militar, esse
debate ficou bloqueado por mais de vinte anos, somente retornando à
agenda a partir do ano de 1985, quando o governo da Nova República lançou o primeiro plano nacional de reforma agrária.
Nesse período verificou-se que ocorreu
uma forte expansão da concentração da terra, a qual é medida pelo Índice
de Gini, que na década de 1980 atingiu seu pico ao redor de 0,870. Nas
décadas seguintes houve apenas pequenas oscilações, sendo que atualmente
esse índice permanece ao redor de 0,8, o que significa um parâmetro
extremamente elevado que situa o Brasil no topo da pirâmide mundial da
concentração agrária.
Concentração agrária brasileira
Mesmo diante dessa concentração agrária brasileira, uma pergunta tem sido recorrentemente colocada: A reforma agrária ainda é uma questão pertinente para a sociedade brasileira no início do século XXI? Obviamente
que se admitirmos a existência da “questão agrária”, então a resposta é
positiva, ou seja, a reforma agrária é ainda um instrumento
decisivo para alterar o poder político rural que se impõe através
propriedade da terra.
Mas há diferentes visões sobre essa
temática. Para as organizações dos trabalhadores rurais, a questão
anterior não faz o menor sentido, tendo em vista que a reforma agrária
continua sendo um tema extremamente atual em suas pautas de
reivindicações, com expressão decisiva nas diferentes formas de lutas
que são desenvolvidas (ocupações de terras, organização de
assentamentos, redefinição dos sistemas de produção, etc.).
Contradições
Já no meio acadêmico residem as maiores
contradições deste debate. Uma linha composta por diversos grupos de
pesquisadores das áreas das ciências sociais e humanas vem afirmando que
o desenvolvimento agrário brasileiro das últimas cinco décadas rebaixou
o problema fundiário, fazendo com que a reforma agrária deixasse de ser
uma reivindicação nacional e um instrumento decisivo capaz de alterar
os destinos históricos do desenvolvimento do país. Com isso entendem que
a questão agrária perdeu a centralidade no debate nacional porque
deixou de ser um instrumento impeditivo do desenvolvimento social e
econômico.
Em grande medida, esses argumentos estão
amparados no diagnóstico de que há uma ampla segmentação produtiva
regional; de que houve uma redução do papel da agricultura no âmbito das
atividades econômicas; de que o atual modelo agropecuário tem
capacidade de atender às demandas de alimentos e de matérias-primas; e
no diagnóstico de que está havendo uma urbanização da vida rural. Nessa
lógica, defende-se uma reforma agrária regionalizada (em áreas de
fronteiras agrícolas ou em áreas de conflitos agrários) com capacidade
para responder pontualmente aos problemas fundiários localizados.
Uma segunda linha de argumentação é
defendida por outro grupo de pesquisadores que passaram a defender uma
reforma agrária de caráter mais “social” do que “econômico”, por
entender que ela teria a função de gerar empregos, conter os fluxos
migratórios e evitar a lumpenização do campo. Nesse caso, o papel da
reforma agrária seria o de auxiliar no equacionamento da questão
populacional do país, até que fosse completada a transição demográfica
iniciada na última década. Para tanto, as políticas de um programa
agrário dessa natureza teriam que ser menos produtivistas e mais
voltadas ao não agrícola existente no espaço rural.
Obstáculos estruturais
Finalmente, uma terceira linha de
pesquisadores entende que diversos obstáculos estruturais do meio rural
continuam a existir devido à existência de uma questão agrária “não
resolvida”. Tais obstáculos se situam nas esferas econômica, política,
social e cultural e revelam que o desenvolvimento das forças produtivas
está travado por normas, costumes, rotinas, relações de poder, entre
outras; fatos que decorrem de relações entre os proprietários de terra e
o restante da população rural. Essas relações são fortemente marcadas
pela condição desigual de acesso à terra e pela desigualdade de renda.
Na verdade, trata-se de um grupo que sustenta a ideia de que a não
solução da questão agrária continua sendo um impeditivo ao
desenvolvimento equilibrado do país.
Particularmente entendo que um país com
mais de 90 milhões de hectares de terras improdutivas e com mais de 4
milhões de famílias de sem terras, além de apresentar índices de
desigualdades econômicas e sociais alarmantes, não pode prescindir do
uso de um instrumento eficaz – como é o caso da reforma agrária – para
tentar reverter este cenário, seguindo o exemplo de muitos países que
hoje são considerados desenvolvidos.
IHU On-Line – Qual sua análise sobre a atuação do MST na luta pela reforma agrária no país?
Lauro Mattei – Inicialmente gostaria de
registrar que, ainda enquanto estudante universitário, acompanhei o
surgimento desse movimento no sul do país, o qual logo se transformou em
movimento nacional e, sem dúvida alguma, se tornou um dos movimentos
sociais mais expressivos do país no final do século XX.
Ao longo desses quase trinta anos de existência do MST tenho
tido a oportunidade de analisar as diferentes fases de organização e de
concepção desse movimento social. É importante ressaltar a fidelidade
que esse movimento sempre teve com a luta pela transformação da
propriedade privada da terra, por entender – corretamente em minha
interpretação – que esta posse é sinônima de poder político, um poder
que no Brasil também é sinônimo de opressão, de crueldade e de
assassinatos, os quais permanecem impunes sob o manto do poder
Judiciário.
Para mim, uma das grandes virtudes e
vitalidade desse movimento foi manter sua rebeldia diante das injustiças
e barbáries que se cometiam e ainda se cometem no meio rural do país.
Nesse período, as elites econômicas e políticas do país por centenas de
vezes tentaram silenciar a luta pela terra através de brutais
assassinatos de lideranças, a grande maioria deles sem julgamento até os
dias atuais. Mas a cada integrante do MST que tombava
sob a brutalidade das forças conservadoras, dezenas de novos membros se
juntavam ao movimento, transformando-o na mais expressiva força social
que este país já teve em seus cinco séculos de história.
Patrimônio político
É justamente esse patrimônio político e
social que tanto incomodou e ainda incomoda as elites brasileiras. Quem
quiser provas disso basta ler os editoriais recentes dos três principais
jornais do país, todos eles condenando o movimento de forma sumária,
como se a estes meios de comunicação estivesse dado o direito de julgar o
que é bom ou ruim para o país e/ou para a sociedade.
Esse mesmo procedimento também aparece
nas formas de representação política das elites brasileiras em todas as
esferas públicas. Assim, das câmaras municipais às assembleias
legislativas estaduais e Congresso Nacional, a estratégia é sempre a
mesma há aproximadamente trinta anos : combate sem fim ao MST.
No fundo, o que precisamos entender é que não se está apenas tentando
combater o movimento dos sem terra, mas sim combater a luta pela reforma
agrária.
É exatamente nesse contexto que as ações do MST se
revestem de importância social e política, pois elas desvelam uma
realidade social, econômica e política que sempre se buscou acobertar.
Por isso, vejo com extrema preocupação comportamentos que começam a
aflorar também na academia brasileira, cuja argumentação está indo na
mesma direção da argumentação das elites anteriormente mencionadas.
Ressalto que a importância fundamental
desse movimento está no fato de conseguir mostrar que a luta pela
reforma agrária não deveria ser apenas uma bandeira dos trabalhadores
rurais sem terra, mas do conjunto da sociedade brasileira. E isso
decorre de um fato óbvio: todas as nações que fizeram a reforma agrária
foram capazes de gerar também enormes benefícios para todos os segmentos
sociais.
IHU On-Line – Quais os principais obstáculos para a realização da reforma agrária no Brasil?
Lauro Mattei – Parece-me que não há
dúvidas de que os principais obstáculos que entravam a realização da
reforma agrária no Brasil se localizam em duas esferas: na estrutura
política e no sistema judiciário brasileiro.
No primeiro caso (a ordem política),
observa-se que desde o processo colonizador existe uma continuidade que
liga o passado ao presente, ou seja, que liga a sociedade agrária
(passado) à sociedade industrial (presente). Essa abordagem evolutiva
apresenta um conjunto de elementos da formação histórica que vão marcar
toda a trajetória do desenvolvimento do país. Do descobrimento aos dias
atuais algumas marcas permanecem intactas e atuando, inclusive, no
sentido de perpetuar esse processo. Um primeiro aspecto a ser registrado
nessa direção é a natureza exploratória dos recursos disponíveis no
território. Se no passado colonial o caráter dessa exploração se
encontrava assentado na grande propriedade privada da terra e no
trabalho escravo, hoje ele permanece amparado na grande propriedade
privada das terras e na propriedade privada dos demais meios de produção
e encontrando no trabalho livre seu substrato de acumulação e de
valorização.
Passado X presente
Esse movimento condicionou e ainda
condiciona a vida material do país. Os traços gerais dessa materialidade
econômica se circunscreviam – no passado colonial – à produção do
excedente para exportação. Isso levou à organização de um sistema
produtivo assentado na exploração agrícola em larga escala e nas
monoculturas. No tempo presente, a exploração econômica agrícola
continua organizada da mesma maneira e cumprindo – certamente de forma
mais consistente – um papel decisivo no conjunto da produção econômica
do país. Ao mesmo tempo, a evolução industrial mostrou uma trajetória
semelhante, considerando-se que as grandes empresas dominam com
frequência cada vez maior a lógica produtiva nacional.
A partir daí se estabeleceram relações
de dominação que se perpetuam no tempo. Mesmo que de vez em quando se
esboce um movimento de mudança, normalmente isso ocorre no sentido de
preservar regalias e vantagens de uma determinada camada social sobre os
demais. No passado colonial esse aspecto se explicitava na figura do
coronel, o qual se sentia no direito de usar e abusar das camadas
submissas em proveito próprio ou de seu grupo social.
No presente essa dominação política se
explicita cada vez mais na defesa de interesses de castas privilegiadas
que, sob o desígnio do interesse nacional, nada mais fazem do que
defender seus próprios privilégios. A ação da bancada ruralista desde a
Constituinte de 1987, tanto no Congresso Nacional como nas distintas
estruturas governamentais, é o exemplo mais puro dessa forma de
representação política.
Atrofia jurídica
Obviamente que essas posições sempre
encontraram e continuam encontrando eco e respaldo no poder Judiciário.
Historicamente, a constituição dessa estrutura de poder nunca deixou de
ser a representação legal de interesses de grupos privados, como se
estes fossem os interesses do conjunto da sociedade. Se no passado
colonial sua formação decorreu dos interesses das elites ligados ao
império lusitano, no presente republicano o poder Judiciário nada mais é
que a síntese da representação jurídica das camadas sociais elitizadas
que dominam os diversos setores econômicos e que se revezam no exercício
do poder político de forma secular.
É essa atrofia da ordem jurídica que
sempre impediu que processos reformadores avançassem no Brasil, o que
facilitou a constituição de uma das sociedades mais desiguais do mundo.
IHU On-Line – Qual o cenário atual da pobreza rural no Brasil?
Lauro Mattei – Em primeiro lugar,
gostaria de deixar bem claro que as concepções sobre pobreza não podem
ser reduzidas apenas à esfera monetária (renda per capita familiar).
Entendo ser necessário um olhar mais profundo sobre diversos fatores
relacionados às privações, os quais podem explicar de forma mais
contundente as causas estruturais que estão na raiz de geração do
fenômeno da pobreza.
Por isso, falar da pobreza rural requer
situar o debate numa perspectiva histórica, o que pressupõe entender a
conformação histórica e social do país e suas particularidades,
especialmente nas áreas rurais. A partir daí é possível afirmar que a
pobreza rural não pode ser concebida como um fenômeno natural, pois se
trata de um processo sócio-histórico construído pelo homem e que tem na
ordem estrutural o seu determinante fundamental.
Do ponto de vista histórico, é
fundamental observar que a estrutura da economia agrária brasileira
prevalece até o tempo presente, ou seja, um sistema de produção dominado
pela grande propriedade da terra, pelas monoculturas e pela produção
voltada fundamentalmente aos mercados internacionais, o que modernamente
está sendo denominado de “agrobusiness”. Impulsionado recentemente pelo
boom mundial das commodities, esse modelo de desenvolvimento excludente
aprofunda suas raízes seculares no meio rural do país e caminha para
consolidar os interesses de um setor (o agrobusiness) como se esses
fossem os interesses do conjunto da nação.
Pobreza rural
Combinando um conjunto de mecanismos
antigos (concentração da terra; uso intensivo de tecnologias modernas;
relações exploratórias de trabalho; concentração dos recursos públicos)
com um novo discurso e novas formas de ação (domínio político no
Congresso Nacional; imposição dos interesses de classe como se fossem
interesses da nação; articulações com demais camadas das elites do
país), busca-se desqualificar o problema da pobreza rural sob o
argumento de que o “modelo do agrobusiness” está sustentando a economia e
demais setores da sociedade brasileira.
Mesmo que se procure minimizar o
problema, a pobreza rural ainda é extremamente expressiva no país. Os
dados da PNAD (IBGE, 2009) revelaram que 8.4 milhões de pessoas que
faziam parte da população rural total (30.7 milhões de pessoas) eram
classificadas como pobres (renda per capita mensal de até 1/2 salário
mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 207,50); e
8.1 milhões de pessoas eram classificadas como extremamente pobres
(renda per capita mensal de até 1/4 salário mínimo, que em valores de
setembro de 2009 correspondia a R$ 103,75). Isso significa que no ano de
2009 aproximadamente 54% da população rural total era enquadrada como
pobre. A distribuição espacial da pobreza rural revela que 53% do total
de pessoas classificadas como pobres viviam no Nordeste, sendo que a
mesma região respondia também por 70% do total de pessoas extremamente
pobres.
IHU On-Line – A formação
histórica da economia rural brasileira continua sendo um dos principais
fatores responsáveis pela pobreza rural?
Lauro Mattei – Caio Prado Júnior costumava resumir esse debate através da seguinte expressão: “somos hoje o que nós éramos ontem”.
Na verdade, ao discutir a formação histórica da economia rural
brasileira, esse autor entendia que a mesma se assentou em três
pressupostos básicos: monocultura em grandes propriedades; relações de
trabalho escravocrata; e produção voltada para o exterior. E é a partir
desses três elementos que podemos encontrar os determinantes da pobreza
rural, inclusive nos dias atuais.
Diversos estudos realizados recentemente
em diferentes regiões do país comprovaram uma questão indiscutível: a
pobreza rural tem sua maior expressão nos espaços geográficos dominados
pelos latifúndios, locais onde se observam elevados índices de
concentração da terra. Nestes locais, as privações (água, terra,
mercados, bens públicos) destacam-se como determinantes essenciais da
pobreza rural. Em todos esses espaços verifica-se um fenômeno
correlacionado: as microrregiões com maior concentração de terras são
exatamente aquelas que apresentam os maiores índices de pobreza rural.
Além disso, no caso brasileiro a pobreza
rural também está fortemente associada ao rápido processo de
industrialização e de urbanização do país ocorrido a partir da segunda
metade do século XX, o qual revelou uma grande contradição: por um lado
verifica-se que ocorreu uma forte expansão da produção física de
mercadorias em todas as atividades econômicas, mas por outro foram
estabelecidos mecanismos que restringiram o acesso a esse conjunto de
bens produzidos, o que proporcionou um alto grau de exclusão social,
cujo resultado mais visível é a existência até os dias de hoje de
elevados índices de pobreza.
Por mais que as teses “produtivistas”
defendam que o país já resolveu o problema da produção agropecuária sem
precisar fazer qualquer reforma em sua estrutura agrária – porém sem
resolver o problema da pobreza –, trata-se de afirmar que a questão
agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se
definem e se implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a
pobreza, seja ela extrema ou qualquer outra expressão que se queira
utilizar.
IHU On-Line – Que cenários se vislumbram para o meio rural do país nos próximos anos?
IHU On-Line – Que cenários se vislumbram para o meio rural do país nos próximos anos?
Lauro Mattei – Vimos que o
desenvolvimento rural brasileiro, especialmente no pós-guerra, foi
implementado de forma subordinada aos interesses dos grandes
proprietários que faziam da exploração extensiva das terras e da
exploração intensiva da mão de obra a essência do seu processo de
acumulação de riqueza. Esse modelo produtivo assentou-se no paradigma da
“Revolução Verde” que, em essência, buscava a artificialização do
ambiente natural, de tal forma que o homem fosse capaz de dominar as
variáveis naturais e, com isso, homogeneizar os sistemas produtivos para
facilitar sua manipulação. A consequência foi que aos poucos os
tradicionais sistemas de exploração agrícola foram sendo substituídos
por grandes explorações com monoculturas mecanizadas, tornando a
atividade agrícola dependente de fatores externos a ela. Ao mesmo tempo
buscou-se reduzir ao máximo a dependência do fator de produção relativo
ao trabalho humano.
Paralelamente a isso, observa-se que
parte da agricultura tradicional seguiu a lógica das policulturas e da
diversificação produtiva, combinando a produção agrícola com a criação
de animais. Nesse caso, observa-se que a diversidade de culturas se
contrapõe ao modelo da monocultura. Para isso, predominam unidades
produtivas com uso intenso do trabalho familiar e com menor dependência
de insumos externos. Quando apoiado adequadamente, este sistema responde
com significativos aumentos de produtividade e de produção, conforme
foi recentemente documentado pelo Censo Agropecuário do IBGE (2006).
Sistema dual
Com isso conformou-se um sistema dual de
desenvolvimento rural, porém com enormes diferenças entre si.
Teoricamente essa diferença poderia ser reduzida, caso as políticas
públicas fossem direcionadas no sentido de combater essas contradições.
Todavia, em função da realidade econômica e, especialmente, da forma de
representação política atual, imagino um cenário futuro em que essas
distâncias tendem a se aprofundar. E uma das principais razões que
suportam essa hipótese diz respeito ao fato de que a questão da reforma
agrária praticamente saiu da agenda de prioridades do atual governo.
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