A terceira reportagem da série
publicada pelo ISA nesta semana sobre o projeto de revogação do Código
Florestal aprovado pela Câmara mostra que a proposta desprotege
ecossistemas de altíssima relevância ecológica fundamentais para
manutenção dos estoques de água do País. As chamadas “áreas úmidas”
correspondem a quase 20% do território nacional e, segundo os
cientistas, por sua importância estratégica, mereceriam um regime de
proteção especial
A proposta de revogação do Código Florestal aprovada pela Câmara coloca em risco as chamadas AUs (áreas úmidas), provedoras de serviços ambientais indispensáveis para a produção agropecuária e a sociedade em geral.
As AUs são definidas como terras eventual ou periodicamente inundadas onde as espécies desenvolvem adaptações relacionadas a essa condição. Os igapós da Amazônia, o Pantanal, várzeas, veredas e mangues são exemplos desse tipo de ecossistema.
O conceito de AU foi excluído do texto final pelo relator Paulo Piau (PMDB-MG), que o considerou “subjetivo”, embora ele seja consagrado na literatura científica e tenha sido incluído na proposta aprovada anteriormente pelo Senado por sugestão de especialistas.
Com a modificação prevista no projeto da Câmara da faixa de proteção das matas ciliares (que ficam às margens dos corpos de água), que passaria a ser demarcada a partir do nível do curso de água na vazante (“leito regular”) e não mais na cheia, as áreas úmidas deixam de ser APPs (Áreas de Preservação Permanente), como sempre foram classificadas desde a edição do atual Código Florestal, em 1965 (saiba mais).
Se o projeto se transformar em lei, essas áreas poderão ser legalmente desmatadas e ocupadas por atividades agropecuárias, mesmo tendo baixa aptidão agrícola e alta importância ecológica.
Na prática, o texto aprovado também inviabiliza a proteção das AUs ao prever, para isso, a necessidade do governo desapropriá-las, o que implica o pagamento de indenizações.
Proposta aprovada por deputados pode desproteger até 90% das áreas úmidas, ecossistemas estratégicos para a conservação dos mananciais de água do País. Área alagada no Parque Indígena do Xingu (MT) |
A proposta ainda retirou a proteção hoje existente da faixa de 50 metros em torno das veredas, usada como zona de amortecimento para atividades econômicas mais impactantes. Assim, esses ecossistemas, que são uma das principais fontes de água no Cerrado, estarão sujeitos ao assoreamento e à contaminação por agrotóxicos.
Estima-se que as AUs ocupem cerca de 20% do território nacional. De 80% a 90% delas ficariam desprotegidas caso o texto da Câmara não seja vetado pela presidenta Dilma Rousseff, de acordo com Wofgang Junk, professor da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso).
Impactos desastrosos
Em comparação a outros ecossistemas, um dos aspectos mais importantes das AUs é a importância dos serviços ambientais oferecidos por elas (leia mais no box abaixo).
A pesquisadora Maria Teresa Fernandez Piedade, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), que há décadas estuda várzeas e igapós da Amazônia, afirma que a destruição dessas áreas pode ter impactos desastrosos na produção agropecuária.
“A principal consequência é a redução do suprimento de água, já que os efeitos da alteração das áreas úmidas não são apenas locais”, alerta. “Com o decréscimo do lençol freático das regiões afetadas, devido à redução da infiltração da água no solo, durante a época seca ocorre um déficit de água para a vegetação e para o homem”, explica a pesquisadora.
Ela lembra que especialistas preveem redução de até 25% na precipitação anual por causa das mudanças climáticas no Cerrado, a maior fronteira agrícola do País. “Por isso, a disponibilidade e a distribuição das águas serão fatores limitantes para o desenvolvimento agrícola e o bem-estar das populações”, analisa.
Ao liberar lentamente grandes quantidades de água da chuva, as AUs mantêm por mais tempo sua disponibilidade, prevenindo a erosão e controlando enchentes.
As várzeas, por exemplo, também facilitam a precipitação e retenção de sedimentos, agindo como filtros e reduzindo os custos do tratamento da água. Por isso, são protegidas em diversas partes do mundo. Nos EUA, quem tiver uma “wetland” em sua propriedade é obrigado a conservá-la e não pode obter financiamentos ou subsídios do Estado se não comprovar que ela está em bom estado.
Áreas úmidas abrigam alguns dos ecossistemas mais importantes e produtivos do planeta. Floresta alagável no Parque Indígena do Xingu (MT) |
Esses ambientes também têm papel fundamental no ciclo de vida de inúmeras plantas e animais, fornecendo a eles abrigo e alimento. Por isso, são fonte de renda e proteína para várias populações humanas, sendo indispensáveis para a pesca, agricultura de subsistência, pecuária, coleta de madeira, frutas, essências e óleos.
Autorizar usos agropecuários intensivos nesses ecossistemas pode afetar de forma irreparável esses serviços ambientais, prejudicando centenas de milhares de famílias que hoje fazem deles um uso sustentável.
Perto de 60% da população rural do Bioma Amazônia está nas AUs. Só no Amazonas e Pará, dois milhões de pessoas vivem ao longo das margens dos rios.
Apesar disso, o relator da reforma do Código Florestal no Senado, Jorge Viana (PT-AC), não acatou a sugestão feita por pesquisadores de garantir a permissão de uso apenas para atividades tradicionais e de baixo impacto nessas áreas.
Não há dados precisos sobre a degradação das AUs no Brasil, mas Maria Tereza Piedade lembra que elas são as primeiras áreas a serem abertas nos processos de colonização.
“Nos grandes centros urbanos esses ambientes vêm sendo convertidos em aterros, servindo à construção de obras civis ou como depósitos, inclusive de lixo. O quadro é muito preocupante”, avalia a cientista.
Leito regular
Os pesquisadores destacam que em ecossistemas com cheias e secas muito pronunciadas, como o Pantanal e a Amazônia, a referência no texto aprovado na Câmara à largura da calha regular para a medição da APP é ineficaz porque não consegue abarcar a grande variação na extensão e expansão lateral das áreas úmidas ao longo do ano e das paisagens.
Na região amazônica, a diferença entre os níveis mais alto e mais baixo de inundação dos rios pode ultrapassar os 10 metros.
“Isto quer dizer que as florestas alagáveis somente serão protegidas se for considerando o nível superior da cheia para efeito de medição da faixa de proteção ambiental”, assegura Piedade.
O Brasil é signatário da Convenção de Ramsar que tem o objetivo de proteger as áreas úmidas de importância internacional. Nessa condição, é obrigado a desenvolver uma política especial para manejá-las e preservá-las. A convenção estabelece como limite das AUs a linha máxima das enchentes.
Segundo especialistas, texto aprovado por deputados não consegue abarcar os ciclos das AUs e, por isso, é uma ameaça a sua proteção. Parque Indígena do Xingu (MT) |
Para os cientistas, a legislação nacional deveria não reduzir a proteção das AUs, mas estimular seu uso sustentável, recuperação e conservação, de acordo a diversidade de seus ambientes.
“Com o texto aprovado pelo Congresso, o país está, na prática, rasgando o compromisso internacional assumido, bem como todo o conhecimento científico acumulado sobre as áreas úmidas”, avalia Raul Silva Telles do Valle, coordenador adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA.
|
|
Algumas atividades econômicas, em especial as desenvolvidas pelas populações tradicionais, conseguiram adaptar-se ao ciclo das águas característico do bioma. Comitiva de gado no Pantanal |
ISA, Oswaldo Braga de Souza.
www.socioambiental.org
Nenhum comentário:
Postar um comentário