sábado, 12 de maio de 2012

Proposta coloca em perigo áreas úmidas

A terceira reportagem da série publicada pelo ISA nesta semana sobre o projeto de revogação do Código Florestal aprovado pela Câmara mostra que a proposta desprotege ecossistemas de altíssima relevância ecológica fundamentais para manutenção dos estoques de água do País. As chamadas “áreas úmidas” correspondem a quase 20% do território nacional e, segundo os cientistas, por sua importância estratégica, mereceriam um regime de proteção especial



A proposta de revogação do Código Florestal aprovada pela Câmara coloca em risco as chamadas AUs (áreas úmidas), provedoras de serviços ambientais indispensáveis para a produção agropecuária e a sociedade em geral.

As AUs são definidas como terras eventual ou periodicamente inundadas onde as espécies desenvolvem adaptações relacionadas a essa condição. Os igapós da Amazônia, o Pantanal, várzeas, veredas e mangues são exemplos desse tipo de ecossistema.

O conceito de AU foi excluído do texto final pelo relator Paulo Piau (PMDB-MG), que o considerou “subjetivo”, embora ele seja consagrado na literatura científica e tenha sido incluído na proposta aprovada anteriormente pelo Senado por sugestão de especialistas.

Com a modificação prevista no projeto da Câmara da faixa de proteção das matas ciliares (que ficam às margens dos corpos de água), que passaria a ser demarcada a partir do nível do curso de água na vazante (“leito regular”) e não mais na cheia, as áreas úmidas deixam de ser APPs (Áreas de Preservação Permanente), como sempre foram classificadas desde a edição do atual Código Florestal, em 1965 (saiba mais).

Se o projeto se transformar em lei, essas áreas poderão ser legalmente desmatadas e ocupadas por atividades agropecuárias, mesmo tendo baixa aptidão agrícola e alta importância ecológica.

Na prática, o texto aprovado também inviabiliza a proteção das AUs ao prever, para isso, a necessidade do governo desapropriá-las, o que implica o pagamento de indenizações.


Proposta aprovada por deputados pode desproteger até 90% das áreas úmidas, ecossistemas estratégicos para a conservação dos mananciais de água do País. Área alagada no Parque Indígena do Xingu (MT)




A proposta ainda retirou a proteção hoje existente da faixa de 50 metros em torno das veredas, usada como zona de amortecimento para atividades econômicas mais impactantes. Assim, esses ecossistemas, que são uma das principais fontes de água no Cerrado, estarão sujeitos ao assoreamento e à contaminação por agrotóxicos.

Estima-se que as AUs ocupem cerca de 20% do território nacional. De 80% a 90% delas ficariam desprotegidas caso o texto da Câmara não seja vetado pela presidenta Dilma Rousseff, de acordo com Wofgang Junk, professor da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso).

Impactos desastrosos

Em comparação a outros ecossistemas, um dos aspectos mais importantes das AUs é a importância dos serviços ambientais oferecidos por elas (leia mais no box abaixo).

A pesquisadora Maria Teresa Fernandez Piedade, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), que há décadas estuda várzeas e igapós da Amazônia, afirma que a destruição dessas áreas pode ter impactos desastrosos na produção agropecuária.

“A principal consequência é a redução do suprimento de água, já que os efeitos da alteração das áreas úmidas não são apenas locais”, alerta. “Com o decréscimo do lençol freático das regiões afetadas, devido à redução da infiltração da água no solo, durante a época seca ocorre um déficit de água para a vegetação e para o homem”, explica a pesquisadora.

Ela lembra que especialistas preveem redução de até 25% na precipitação anual por causa das mudanças climáticas no Cerrado, a maior fronteira agrícola do País. “Por isso, a disponibilidade e a distribuição das águas serão fatores limitantes para o desenvolvimento agrícola e o bem-estar das populações”, analisa.

Ao liberar lentamente grandes quantidades de água da chuva, as AUs mantêm por mais tempo sua disponibilidade, prevenindo a erosão e controlando enchentes.

As várzeas, por exemplo, também facilitam a precipitação e retenção de sedimentos, agindo como filtros e reduzindo os custos do tratamento da água. Por isso, são protegidas em diversas partes do mundo. Nos EUA, quem tiver uma “wetland” em sua propriedade é obrigado a conservá-la e não pode obter financiamentos ou subsídios do Estado se não comprovar que ela está em bom estado.


Áreas úmidas abrigam alguns dos ecossistemas mais importantes e produtivos do planeta. Floresta alagável no Parque Indígena do Xingu (MT)




Esses ambientes também têm papel fundamental no ciclo de vida de inúmeras plantas e animais, fornecendo a eles abrigo e alimento. Por isso, são fonte de renda e proteína para várias populações humanas, sendo indispensáveis para a pesca, agricultura de subsistência, pecuária, coleta de madeira, frutas, essências e óleos.

Autorizar usos agropecuários intensivos nesses ecossistemas pode afetar de forma irreparável esses serviços ambientais, prejudicando centenas de milhares de famílias que hoje fazem deles um uso sustentável.

Perto de 60% da população rural do Bioma Amazônia está nas AUs. Só no Amazonas e Pará, dois milhões de pessoas vivem ao longo das margens dos rios.

Apesar disso, o relator da reforma do Código Florestal no Senado, Jorge Viana (PT-AC), não acatou a sugestão feita por pesquisadores de garantir a permissão de uso apenas para atividades tradicionais e de baixo impacto nessas áreas.

Não há dados precisos sobre a degradação das AUs no Brasil, mas Maria Tereza Piedade lembra que elas são as primeiras áreas a serem abertas nos processos de colonização.

“Nos grandes centros urbanos esses ambientes vêm sendo convertidos em aterros, servindo à construção de obras civis ou como depósitos, inclusive de lixo. O quadro é muito preocupante”, avalia a cientista.

Leito regular

Os pesquisadores destacam que em ecossistemas com cheias e secas muito pronunciadas, como o Pantanal e a Amazônia, a referência no texto aprovado na Câmara à largura da calha regular para a medição da APP é ineficaz porque não consegue abarcar a grande variação na extensão e expansão lateral das áreas úmidas ao longo do ano e das paisagens.

Na região amazônica, a diferença entre os níveis mais alto e mais baixo de inundação dos rios pode ultrapassar os 10 metros.

“Isto quer dizer que as florestas alagáveis somente serão protegidas se for considerando o nível superior da cheia para efeito de medição da faixa de proteção ambiental”, assegura Piedade.

O Brasil é signatário da Convenção de Ramsar que tem o objetivo de proteger as áreas úmidas de importância internacional. Nessa condição, é obrigado a desenvolver uma política especial para manejá-las e preservá-las. A convenção estabelece como limite das AUs a linha máxima das enchentes.


Segundo especialistas, texto aprovado por deputados não consegue abarcar os ciclos das AUs e, por isso, é uma ameaça a sua proteção. Parque Indígena do Xingu (MT)




Para os cientistas, a legislação nacional deveria não reduzir a proteção das AUs, mas estimular seu uso sustentável, recuperação e conservação, de acordo a diversidade de seus ambientes.

“Com o texto aprovado pelo Congresso, o país está, na prática, rasgando o compromisso internacional assumido, bem como todo o conhecimento científico acumulado sobre as áreas úmidas”, avalia Raul Silva Telles do Valle, coordenador adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA.


O que são as áreas úmidas?

As “áreas úmidas” ocorrem em todas as regiões brasileiras e estima-se que ocupem perto cerca de 1,7 milhão de quilômetros quadrados ou 20% do território nacional, a grande maioria densamente florestados.

Elas correspondem a cerca de 30% da Bacia Amazônica. Deste total, mais de 400 mil quilômetros quadrados estão localizados ao longo do rio Amazonas e de seus grandes afluentes.

Nas áreas úmidas, são encontrados alguns dos ambientes mais produtivos e de maior diversidade biológica do planeta.

No Brasil, elas podem ser divididas em: áreas alagáveis ao longo de grandes rios de diferente qualidade de água (várzeas e igapós); baixios ao longo de igarapés de terra firme; áreas alagáveis entre grandes rios (campos, campinas e campiranas alagáveis, campos úmidos, veredas, campos de murundus, brejos, florestas paludosas); e áreas úmidas do estuário (mangue, banhados e lagoas costeiras).




Pantanal ameaçado

A proposta de revogação do Código Florestal considera o Pantanal área de uso restrito, mas abre a possibilidade de novos desmatamentos na região por autorização dos órgãos ambientais.

O Pantanal é a maior planície inundável do mundo, com 210 mil quilômetros quadrados. Deste total, 70% estão no Brasil (cerca 151 mil quilômetros quadrados e 2% do território nacional), distribuídos nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

O bioma é reconhecido nacional e internacionalmente, pela exuberância de sua biodiversidade, como uma das áreas úmidas de maior importância do globo. É declarado Reserva da Biosfera e Patrimônio Mundial Natural pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura). Também é reconhecido pela Constituição como Patrimônio Nacional.

Apesar disso, mais de 15% da região já foi desmatada. Ela vive problemas relacionados ao assoreamento, incêndios florestais, construção de barragens, contaminação por agrotóxicos e extração de minérios.




Algumas atividades econômicas, em especial as desenvolvidas pelas populações tradicionais, conseguiram adaptar-se ao ciclo das águas característico do bioma. Comitiva de gado no Pantanal






     
ISA, Oswaldo Braga de Souza.

www.socioambiental.org

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