terça-feira, 31 de outubro de 2017

Triplo A: o controverso corredor ecológico que ligaria os Andes ao Atlântico

Mapa da proposta do corredor AAA. Imagem: Fundação Gaia Amazonas.
Mapa da proposta do corredor AAA. Imagem: Fundação Gaia Amazonas.
Uma grande área de 200 milhões de hectares onde vivem 30 milhões de pessoas, entre seus habitantes 385 povos indígenas, de oito países sul-americanos. Este é o tamanho do que seria um imenso corredor ecológico transnacional que ligaria a cordilheira dos Andes, passando pela floresta amazônica até o oceano Atlântico.
Seria no total, 309 áreas protegidas (957.649 km2) e 1.199 terras indígenas (1.223.997 km2) ligadas pelo imenso corredor. A ideia de criar o Corredor Andes-Amazônia-Atlântico, também conhecido como triplo A ou, simplesmente, AAA, está em gestação há alguns anos e tem avançando a passos largos nos últimos meses.
Com vistas à Conferência do Clima (COP-23), em novembro, na Alemanha e ao encontro mundial de ministros do meio ambiente das Nações Unidas, que ocorrerá início de dezembro, no Quênia, alguns países latino-americanos têm corrido para avançar em propostas mais concretas antes destes importantes eventos internacionais.
A ideia que ainda gera controvérsia tem feito os olhos de muitos ambientalistas brilharem, assim como os de gestores políticos que vislumbram nesta como sendo uma grande contribuição da América Latina para a conservação da biodiversidade e evitar os impactos drásticos da variação do clima.
Capitaneada pela Fundação Gaia Amazonas, com sede em Bogotá, na Colômbia, esta iniciativa sonha em “proteger o contínuo da maior floresta do mundo no mais importante ecossistema do mundo e combater o maior problema do mundo, as mudanças climáticas”. É com estas palavras que define o documento de apresentação do AAA publicado pela organização colombiana.
Nada acontece sem o Brasil
Dos Andes, incluindo o norte do rio Marañón no Peru, passando por toda a Amazônia equatoriana, colombiana, o estado do Amazonas na Venezuela, à porção amazônica da Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Todos estes comporiam o mosaico que uniria áreas protegidas e terras indígenas. Esse sonho apenas ocorreria se o principal aliado entrasse a bordo, o Brasil. Em solo brasileiro, o Corredor AAA passaria pelos estados do Amazonas, Roraima e Amapá.
“O corredor ecológico que estamos propondo existirá só se o Brasil entrar na iniciativa. Sem o Brasil, seria muito difícil de acontecer”, disse a ((o))eco o antropólogo Martin Von Hildebrand, presidente da Fundação Gaia Amazonas, um dos grandes promotores do AAA.
Um terço da Amazônia brasileira é ocupada por terras indígenas, um quarto reúne áreas protegidas. “Por que não somar todas estas áreas e conectá-las em um grande eixo até o Atlântico?” questiona Hildebrand. O Brasil, segundo ele, nunca pensou em um corredor até os Andes porque “nunca olhou para além de suas fronteiras”.
Em 2015, durante um encontro com o presidente Juan Manuel Santos em um sobrevoo pela Amazônia colombiana, Hildebrand indicou no mapa as diversas áreas protegidas e sugeriu a possibilidade de um corredor. “O presidente se interessou e toda a ideia deslanchou”, contou.
Andes, Amazônia e Atlânticos unidos num único corredor. Questão diplomática emperra negociação. Foto: Cortesia Iepé.
Andes, Amazônia e Atlânticos unidos num único corredor. Questão diplomática emperra negociação. Foto: Cortesia Iepé.
Nascido nos Estados Unidos e naturalizado colombiano, Hildebrand, de 74 anos, tornou-se um renomado ambientalista e defensor dos povos indígenas desde que começou a viajar pelos rios da selva colombiana, na década de 70, e contribuir para a demarcação de terras indígenas e áreas de conservação. São quase cinco décadas em que se dedica à conservação da floresta no país que escolheu naturalizar-se. Esteve por trás da criação e ampliação do parque nacional Chiribiquete, de 1,3 milhão de hectares, localizado nos departamentos de Caquetá e Guaviare. Tornou-se internacionalmente conhecido quando ganhou, em 1999, o prêmio da fundação sueca Right Livelihood Award que concede o “Nobel alternativo” dos direitos humanos.
Depois que Manuel Santos se reuniu com seus ministros e propôs a ideia, o assunto teve grande cobertura da imprensa chegando aos ouvidos da chancelaria brasileira e do então governo de Dilma Rousseff, antes mesmo de qualquer comunicação por parte da diplomacia colombiana. O ocorrido azedou a ideia e causou repulsa do lado brasileiro.
“É sim interessante, mas não tinha recebido a acolhida do governo Dilma e nunca mais foi apresentada formalmente. Conheço o assunto por ONGs interessadas e pelo próprio Martin, pois estive com ele três vezes, mas nunca me chegou nada oficial”, explica José Pedro de Oliveira Costa, secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Costa conversou com ((o))eco no final de setembro, poucos dias depois que o presidente Manuel Santos disse, em Nova York, que entregaria uma carta ao presidente Michel Temer para impulsionar a ideia do corredor.
O secretário afirmou que, apesar de não ver resistência à ideia, a forma como foi comunicada havia sido “impositiva” e, por isso, rejeitada inicialmente. “Não teria a possibilidade de sucesso da forma como está colocada. Não vejo que produziria os resultados que queremos. Enquanto ideia, é absolutamente válida, mas precisamos conversar sobre a formulação, pois definir o território em país dos outros é algo complicado”, comentou.
A retomada
Após o mal-entendido que teria congelado a conversa sobre esse tema, o Brasil tem demonstrado que está disposto a retomar o assunto sem maiores rancores.
Nos últimos dias 11 e 13 de outubro, a Colômbia hospedou o Fórum de Ministros e a Consulta Regional para a Assembleia da ONU para o Meio Ambiente. Lá, representantes dos oito países amazônicos sentaram-se para dialogar sobre o AAA.
“A ideia é criar um corredor que conserve a riqueza biológica e cultural. Os países coincidiram e agora é importante definir um plano com um mecanismo de comunicação para compartilhar os avanços de cada país e aprofundar os intercâmbios. Uma etapa seguinte definirá como seria este corredor e o seu mecanismo institucional”, afirmou o ministro colombiano de Ambiente, Luis Gilberto Murillo, após o encontro em Bogotá.
Do lado brasileiro, participou o chefe da assessoria de Assuntos Internacionais do MMA, Fernando Coimbra. “Esta reunião permitiu aos países da bacia amazônica discutir suas diferentes perspectivas sobre a conectividade de ecossistemas. Para a conservação e uso sustentável dos recursos naturais é importante identificar maneiras de assegurar a conectividade dos ecossistemas”, declarou à imprensa local em um tom diplomático.
Corredor ecológico uniria 309 áreas protegidas (957.649 km2) e 1.199 terras indígenas (1.223.997 km2). Foto: Cortesia Iepé.
Corredor ecológico uniria 309 áreas protegidas (957.649 km2) e 1.199 terras indígenas (1.223.997 km2). Foto: Cortesia Iepé.
Mas o porquê de um corredor ecológico
Os corredores ecológicos pretendem unir os fragmentos florestais ou unidades de conservação separados por interferência humana. O conceito remonta aos anos 90 e tem como objetivo permitir o livre deslocamento de animais, a dispersão de sementes e o aumento da cobertura vegetal.
A proposta é “apetitosa”, mas “temos que sentar e discutir”, admitiu o secretário de Biodiversidade. Para assumir um compromisso internacional sobre um determinado território implicaria chegar a um consenso entre governos nacionais, locais e suas populações.
A conectividade entre ecossistemas é o grande tema do momento. Contudo, a ideia do AAA tem problemas de ordem diplomática e de formatação, explicou José Pedro. A proposta define uma área específica, mas sem demonstrar um embasamento científico, na sua avaliação. “Algo imposto de cima para baixo, como se fosse uma Transamazônica às avessas. Antes, era fazer uma Transamazônica para desenvolver, agora fazer um corredor para proteger”, comparou ao destacar a necessidade de construir diálogos de base.
Sob o aspecto técnico, José Pedro sugeriu que o corredor não acabe nos Andes e que chegue ao Pacífico, cobrindo de ponta a ponta o continente. “Tem animais que fazem esse percurso subindo a cordilheira até o outro lado na Colômbia, que é uma das regiões mais úmidas do planeta e não teria razão de ficar de fora do AAA”, ponderou.
Para incluir territórios indígenas no Brasil, também precisa-se conversar com a FUNAI que, segundo ele, a princípio teria também demonstrado interesse em participar. “Em vez de ser por imposição, na nossa visão, deveria ser por adesão”. Assim, cada país designaria quais áreas protegidas deveria incluir no corredor. Os estados também deveriam ser consultados e um grupo de trabalho criado.
Outra preocupação é não deixar a Bolívia de fora. No desenho inicial proposto pela Gaia Amazonas, a Bolívia não está na rota do corredor. “A definição desse espaço tão grande e tão tentador à primeira vista pode criar dissonância”.
Um laboratório continental contra mudanças climáticas
A Colômbia certamente assinaria embaixo um documento internacional propondo a criação do AAA. Se o Brasil assinar, os outros países se somariam, calcula Hildebrand. O antropólogo diz ter cautela para não soar como uma proposta unicamente colombiana, “ela é de todos”. “Não quero que pensem que é de um só país”.
Ele sai em defesa da continuidade dos ecossistemas. As razões são básicas: para que a biodiversidade sobreviva, precisa haver um fluxo genético e, por isso, a conectividade entre áreas protegidas. Além da manutenção dos serviços ambientais e do ciclo das chuvas.
Em um metro quadrado de floresta, evapora-se sete vezes mais água que uma mesma área em ambiente marinho. O Corredor AAA pode ser um laboratório para fazer frente às mudanças climáticas, argumenta.
Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá, está no traçado do corredor. Foto: Cortesia Iepé.
Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá, está no traçado do corredor. Foto: Cortesia Iepé.
“Precisamos sentar e construir em conjunto e que cada país faça a sua proposta a partir de suas leis”, antecipa Hildebrand. Nos próximos dois anos, ele espera já ser possível ter acordos assinados e que cada país desenvolva seu próprio plano de ação. Em um prazo de cinco anos, já se poderia ter projetos sendo colocados em prática em alguns países.
Uma das formas de financiamento deste grande corredor poderia vir do Global Environmental Facility (GEF), fundo mundial criado na Eco-92 para financiar projetos ambientais no mundo, sugeriu o secretário de Biodiversidade do MMA.
Calha norte do rio Amazonas
Do lado brasileiro, o AAA incluiria toda a calha norte do rio Amazonas, isto é: 62 UCs (437.015 km2) e 81 terras indígenas (439.189 km2).
Segundo Luís Donisete, coordenador executivo do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), uma das organizações da sociedade civil engajada no debate do corredor, o que o AAA põe em pauta é a perspectiva de ampliar ações de cooperação entre governos e países da Amazônia em articulação com a sociedade civil. Qualquer temor quanto ao que se receia de uma possível internacionalização da Amazônia é infundado, argumentou.
“Não há nenhuma intenção de criar uma gestão internacional da Amazônia ou questionar a soberania dos países. Se propõe ações colaborativas entre os governos da região que, voluntariamente, congregariam esforços para manter a floresta e buscar seu desenvolvimento sustentável, respeitando os povos que lá vivem e buscando a conectividade dos ecossistemas e os serviços climáticos que esta região presta ao continente americano e ao resto do mundo”, disse a ((o))eco.
Esta ONG atua há 15 anos no Amapá e norte do Pará e ajudou na criação, em 2013, do primeiro mosaico de mais de 12 milhões de hectares que reúne seis UCs e três terras indígenas, a Amazônia Oriental.
Ao conhecer esta experiência no Oeste do Amapá e Norte do Pará, a colombiana Gaia Amazonas levantou uma perspectiva em maior escala para se pensar em um novo modelo para a Amazônia que não seja o clássico de “exploração predatória de recursos naturais”, disse Donisete.
“Vimos que essa ideia tinha potencial”, apesar de vê-la como visionária. “Não dá para continuarmos trabalhando isoladamente em ilhas”, afirmou.

América do Sul perdeu 30% de suas áreas selvagens desde 1990


Um estudo publicado ontem na revista Current Biology mostra que a América do Sul foi a região que mais perdeu áreas selvagens desde 1990: 30%. Seguida pela África, com 14%. A porcentagem mundial foi de 9,6%. Seis pesquisadores australianos, um estadunidense e um canadense pesquisaram os dados e fizeram recomendações para políticas globais e locais. O nome da pesquisa é significativo: “Declínio Catastrófico em Áreas Selvagens Soterra Metas Ambientais Globais”.
Os pesquisadores não posam de isentos. Recomendam que as políticas públicas foquem nas “atividades ameaçadoras que têm levado à erosão recente das áreas selvagens”: a expansão rodoviária, a silvicultura, a mineração industrial e as operações agrícolas de larga escala. “Metade do desmatamento de florestas tropicais entre 2000 e 2012 foi ilegal”, constatam.Os autores não consideram áreas selvagens aquelas que não são habitadas por humanos. E sim as que são mais preservadas – com a presença de indígenas, por exemplo. Coordenados por James Watson, da Universidade de Queensland, eles constataram a perda de 3,3 milhões de quilômetros quadrados em 26 anos. Em 1990, o total de áreas selvagens era de 30, 1 milhões de quilômetros quadrados.
Eles consideram que as ações de conservação deveriam incluir a criação de amplas áreas protegidas, o estabelecimento de corredores de megaconservação entre as áreas protegidas e a autorização para comunidades indígenas estabelecerem suas reservas.
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Em vermelho, áreas selvagens destruídas desde 1990; em verde, as remanescentes
Eles concluem o estudo dizendo que os exemplos positivos, inclusive no Brasil, são poucos. E defendendo ação imediata em larga escala, o que inclui plataformas políticas globais. “A contínua perda de áreas selvagens é um problema global com consequências amplas e irreversíveis para o homem e para a natureza. Se essas tendências continuarem, não haverá áreas selvagens significativas em menos de um século”.