terça-feira, 27 de novembro de 2012

Experiencia da missionária Rosimeire Diniz, do CIMI-MA no acampamento Laranjeira Nhanderu, do Povo Kaiowá Guarani, MS


Nestes dias em que se aproxima o Congresso dos 40 anos do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e da grande repercussão da realidade vivida pelos Kaiowá Guarani no Mato Grosso do Sul, senti a vontade de partilhar um relato que fiz sobre um dia que passamos na comunidade Laranjeira Nhanderu, no mês de março de 2010.

Esses meus dezoito anos de caminhada de Cimi junto aos povos indígenas, têm me ensinado muito, e tem apontado novos horizontes e descobertas para a minha vida. De cada uma das experiências vivenciadas, lições foram tiradas e servirão para a vida toda. Determinadas situações nos deixam desanimados e outras são verdadeiras fontes de inspiração e sabedoria. É como beber na fonte. É uma dessas experiências que quero partilhar com os amigos e amigas do Cimi.

Em março de 2010, a reunião do Conselho Diretor e dos Conselhos Fiscal e Econômico do Cimi, aconteceu em Campo Grande Mato Grosso do Sul, partindo da necessidade de todos os conselheiros conhecerem mais sobre a realidade vivida pelos Kaiowá Guarani.
Nossa presença tinha com foco reafirmar nosso compromisso na defesa desse povo e de solidariedade aos indígenas e à equipe do Cimi naquele regional.

Integrei a comitiva como membro do Conselho Econômico. Do Regional do Maranhão viajaram ainda a Rosana Diniz Santos, como Coordenadora Conselheira e dois indígenas Awá-Guajá Tatuxa’a e Manâxika. Os Awá-Guajá pediram-nos para participar dessa viagem, pois conheceram a história dos Kaiowá Guarani pelos documentários Terra Vermelha, Semente de Sonhos, as matérias no Jornal Porantim e os relatos da Rosana e Madalena, missionárias do Cimi no Maranhão, junto a esse povo. Os indígenas queriam conhecer de perto a realidade, conversar com os parentes e levar flechas para que se defendessem.

Como a reunião que eu participava terminou antes, tive a oportunidade de viajar com Tatuxa’a e Manaxika Awá-Guajá para o acampamento Laranjeira Nhanderu, do Povo Kaiowá Guarani, localizado às margens da BR, próximo ao município de Rio Brilhante, e passar um dia com eles. A comitiva do Cimi se juntaria no início da noite para seguir viagem às outras comunidades.

Viajamos bem cedinho de corona com professores da Universidade Católica Dom Bosco - UCDB que seguiam para outra localidade, e gentilmente nos deixaram em Laranjeira.  Na estrada, impressionava-nos a visão de um trecho de aproximadamente 224 km, com extensas fazendas de plantações de soja. Era a primeira vez que estávamos diante do “deserto verde”, em proporções tão alarmantes.

A paisagem era triste e hegemônica, nem de longe se comparava com um trecho, de aproximadamente os mesmos quilômetros que fazemos de São Luis a Santa Inês. Cá, mesmo com tanto latifúndio de gado, é possível encontrar várias comunidades quilombolas, povoados, gente vendendo milho, canjica, pamonha, frutas na beira da estrada. É um colorido bonito, de vida. Bem diferente do que víamos.


Chegamos à aldeia por volta das 09h40min da manhã. Fomos recebidos por um grupo cantando, dançando, empunhando os maracás e sorrindo. Em mim, havia um mistura de sentimentos, feliz pela recepção e impressionada com o que via.  O impacto da primeira olhada ficou estampado nos nossos rostos. Para os indígenas Awá-Guajá, acredito, que impacto foi maior, a aldeia deles era completamente diferente da realidade que eles estavam vendo.  Os Kaiowá Guarani nos acolheram à melhor maneira de ser deles. Fomos muito bem recebidos pelo saudoso Zezinho Kaiowá Guarani, na época, cacique da aldeia, que já nos aguardava. Em pouco tempo estávamos diante de toda a comunidade de aproximadamente 125 pessoas.

A aldeia era um acampamento de barracos de lona preta na beira da estrada, que ligava Campo Grande a Dourados, próximo à cidade de Rio Brilhante.  Dos dois lados da estrada estavam as grandes fazendas de soja, os indígenas ficavam na área entre a estrada e as cercas das fazendas. Eles precisam tomar todos os cuidados para não serem atropelados ou mortos pelos seguranças das fazendas.

Ficamos um tempo na casa do Zezinho, junto com a comunidade, e ali foram feitas as apresentações. Os Awá leram para os parentes a carta feita pela comunidade, escrita na língua awá e entregaram os presentes que trouxeram: flechas e sua solidariedade. Foi emocionante ver os Awá-Guajá expressarem através da carta, dos presentes e da presença.

Homens, mulheres, crianças, todos queriam ver e tocar as flechas, tirar fotos com elas nas mãos, e logo trataram de experimentá-la. Perguntavam de que material era produzido e o que eles caçavam com elas, isso gerou uma boa troca de informações. A partir desse momento, o diálogo fluiu entre eles e foi um momento celebrativo, de entrosamento e alegria entre esses dois povos de língua tupi num gesto bem singelo.



Bastaram cinco flechas serem atiradas para alto e algumas caírem dentro da fazenda, que logo apareceram os seguranças perguntando pelas lideranças do povo. E essa atitude dispersou o grupo e todos se apresentavam como liderança. Não demorou muito e passou uma caminhonete na estrada, bem devagar e alguém olhando para o grupo. Os indígenas nos informaram que, infelizmente, era uma cena comum.

Depois desse episódio, passamos a conhecer a aldeia. Muitos barracos próximos uns dos outros, ainda havia bastante lama dentro deles e também fora, por conta da chuva forte que caiu no mês de janeiro e fevereiro, e que alagou o acampamento; invadiu os poços de água potável e deixou várias famílias ainda mais desabrigadas.

A temperatura dentro dos barracos chegava seguramente a 45 graus, muito calor, quase insuportável. Digo quase, porque dentro de um deles havia uma senhora de 97 anos que não conseguia mais andar, permanecendo o dia inteiro, sentada ou deitada numa rede dentro desse ambiente extremamente quente.

Do lado de fora dos mesmos, o calor também era grande, e algumas mulheres lavavam roupas totalmente exposta ao sol escaldante. Com o sol cada vez mais forte, começamos a buscar as sombras das poucas árvores que tinham por ali, ou ainda debaixo da lona entre uma casa e outra. Essa caminhada em busca de um pouco de sombra para nos abrigar me fez lembrar alguns peixes que necessitam vir à superfície da água para respirar e tornam a emergir. Assim estávamos nós, em busca de um pouco de sombra. Fomos algumas vezes nos refrescar no Rio Brilhante que ficava perto, mais na volta, chegávamos suando no acampamento. Nessas horas sempre me lembrava daquela senhora sentada o dia todo, naquele ambiente quente.

O calor era sufocante para nós que somos acostumados, mais é diferente estávamos ali apenas por um dia. Ficava pensando nos Kaiowá, como eles aguentavam diariamente aquela situação?

Com o passar das horas, à medida que íamos conhecendo o local, encontrávamos os sinais de vida: alguns pés de milho e mandioca no pedaçinho da terra, dois periquitinhos nos galhos de árvores, um porco do mato... Mas o sinal maior de vida e esperança, era a alegria e a religiosidade do Povo. Cada barraco que visitávamos se repetia a história, o desejo e o sonho de voltar ao seu Tekohá.  Partilhamos conversas, preocupações, sorrisos acompanhados de muito tererê.

A tarde foi chegando e o calor foi amenizando, a conversa com os mais velhos, suas histórias de vida, seus cantos, encheram meus olhos de lágrimas.

Fim de tarde, o sol se pondo, me comoveu as mulheres encostadas nas cercas de arame farpado da fazenda, olhando o horizonte. Fiquei junto delas por um instante, e pensando em tudo que estava vendo, ouvindo e sentindo. Perguntei a elas o que estavam olhando, elas me responderam que era o Tekohá de onde tinham sido despejados e para onde pretendiam voltar e retomar a vida.

Contaram-me como era a vida deles nos dias que conseguiram passar no Tekohá, antes da reintegração de posse. Seus olhos brilhavam relatando paz que tinham.
Os mais velhos ficavam felizes e caminhavam livremente, que mesmo com pouco tempo que estavam lá, tinham animais de criação, roças, tinham dignidade. Veio a reintegração, e eles voltaram para a beira da estrada.

E os Awá diante desse cenário? Tatuxa’a pedia para eu fotografar tudo, perguntava muito porque era daquele jeito, queria saber de tudo e ter fotos para poder contar e mostrar ao seu povo, para eles verem como era ruim ficar sem a terra. Ele e Manãxika olhavam com atenção a tudo que estava à sua frente.

Quando me dei conta da hora, já era noite, não demorou muito e a turma do Conselho do Cimi, junto com os missionários do regional Mato Grosso do Sul chegou.
Permanecemos mais um pouco com aquela comunidade e seguimos viagem para conhecer outras três realidades, agora num grupo maior.


Vivenciar alguns momentos naquela comunidade como em todas as outras que visitamos como Passo Piraju, Kurussu Ambá e Guyraroká, além de toda emoção sentida, é acreditar que nosso fazer “cimiano”, mesmo parecendo pequeno, é sinal de esperança e de luta.

Sem dúvida, esses foram os momentos mais marcantes da minha caminhada no Cimi durante esses anos. Por muitas vezes me emocionava. Essa experiência entrou num momento importante da minha vida, e naquele chão sagrado, pisado firmemente pelos pés daqueles guerreiros e guerreiras, renovei meu compromisso com a causa indígena.

Por Rosimeire Diniz Santos
 
http://eanessilva.blogspot.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário