Com a justificativa de tirar da
ilegalidade histórica milhares de ribeirinhos, proposta não exclui uso
das áreas por empresas e prevê fim da proteção ao entorno dos lagos
naturais
Além dos igapós, a Amazônia tem outro de
seus biomas ameaçado pelo texto-base do novo Código Florestal
brasileiro: as várzeas, que foram excluídas do conceito de Áreas de
Preservação Permanente (APPs).
E a delimitação das APPs também sofreu
uma mudança “singela”, defendida como um detalhe pelos defensores da
redução das APPs, exemplo dos simpatizantes das propostas ruralistas.
Mas pesquisadores e ambientalistas do
Amazonas vêem na proposta de se delimitar as APPs a partir do nível
médio dos rios – e não mais da maior cota – a ameaça de um dano
irreversível às várzeas, duplamente desprotegidas.
Para o diretor do Museu da Amazônia e
vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), Ênio Candoti, a proposta contida no novo Código toma como base
as florestas e rios de planalto e não leva em consideração o regime
diferenciado dos rios amazônicos.
De acordo com ele, na Amazônia, a
diferença entre o leito de seca e de cheia passa de dez metros e
engloba uma área de mais de 1 milhão de metros quadrados (m²), sendo
que mais de 400 mil m² são áreas inundáveis sazonalmente.
“As florestas submersas exigem uma legislação específica”, afirma Candoti.
A pesquisadora e diretora do Grupo de
Ecologia, Monitoramento e Uso Sustentável de Áreas Úmidas do Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Maria Tereza Piedade,
lamentou o fato de a sugestão de definir dispositivos legais
específicos para as áreas de várzea e igapó, feita pelo Inpa ao relator
do Código Florestal, senador Jorge Viana (PT-AC), não ter sido
acatada.
“Se definimos as APPs a partir de
níveis da seca e não da cheia, estamos autorizando o uso de tudo que
fica para cima, inclusive o que estará nas próprias margens reais dos
rios”, criticou.
Incertezas
A irregularidade no regime de cheia e
vazante dos rios amazônicos é apontada pela engenheira florestal e
analista ambiental do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas
(Ipaam), Janaína Rocha, como o principal ‘inimigo’ dessa mudança.
É que, segundo ela, como em determinado
ano a cota máxima do rio pode alcançar áreas mais distantes do leito
do que no ano anterior ou seguinte, o nível médio da água também pode
ter uma variação significativa e irregular.
“Se em 2009 a maior cheia delimitou a
APP a uma distância maior mas, em 2010, a cheia não foi tão grande,
então os limites da APP, pelo nível médio do rio, deixam de fora da
área protegida florestas que estavam na APP no ano anterior. Isso vai
permitir o desmatamento de áreas antes protegidas, um dano
irreversível”, explicou.
Além disso, Janaína alertou para o fato
de as comunidades ribeirinhas terem crescido muito nas últimas
décadas, assim como sua produção de resíduos sólidos.
“A forma de utilização da várzea é
outra e ocorre em outra intensidade. Por isso, precisamos de
dispositivos legais específicos. Não podemos generalizar e abrir as
portas dessa forma.”
Exploração
O diretor-presidente do Ipaam, Ademir
Stroski, compartilha da mesma preocupação de Janaína, mas defende os
benefícios sociais da medida, que deve retirar da ilegalidade milhares
de famílias de ribeirinhos que usam a várzea para a produção agrícola.
“Os ribeirinhos eram tidos como ilegais
por ocupar áreas de várzea. Considerando a maior cota ficamos
engessados, pois em uma grande cheia, onde vai parar a APP?”,
questionou ele.
Benefícios à parte, Stroski não
descarta o risco de atividades econômicas com fins de exploração da
madeira se embasarem nos mesmos dispositivos legais que autorizam a
utilização das várzeas pelos ribeirinhos para intervir nessas áreas,
levando o desmatamento até lá. “É possível”, reconheceu.
Perdas
Outra crítica ao texto-base do novo
Código Florestal foi feita pelo presidente do Grupo de Trabalho
Amazônico (GTA), Rubens Gomes, que reprovou a medida prevista por um
dos artigos da proposta de lei, de eliminar as APPs do entorno de
lagoas naturais, apontou.
“A nossa região é composta por inúmeras
lagoas naturais, que vão ficar sem proteção legal e expostas ao
desmatamento. Além de refletir na supressão da fauna e flora, essa
medida ainda pode comprometer a subsistência das populações
tradicionais, que vivem da caça, pesca e extrativismo”, pontuou.
Para ele, há brechas no projeto que
permitem novos desmatamentos, facilitando a regularização de uma
situação irregular e permitindo a ocupação de áreas que deveriam ser
preservadas.
“Para novos desmatamentos, a lei
determina que a área degradada pode ser recuperada com 50% de espécies
exóticas, que incluem as de uso econômico. Na prática, apenas metade
das áreas degradadas serão recuperadas com as espécies originais.”
Anistia
A consolidação das atividades
agropastoris em APPs ou Reservas Legais degradadas e a anistia aos
produtores que desmataram ilegamente até julho de 2008 também são alvos
de críticas de Gomes, que as taxa de ‘medidas inconstitucionais’.
“Essas medidas constituem a anistia aos
desmatadores de APPs e Reservas Legais, contrariando o artigo 225 da
Constituição Federal.”
Por fim, outra mudança, que desobriga
os proprietários de unidades com até quatro módulos fiscais de
recuperar áreas de Reserva Legal ou APPs desmatadas, também é
comprometedora, na opinião de Gomes.
“Essa era para ser uma medida para
beneficiar a agricultura familiar, mas na nossa região cada módulo tem
100 hectares, e uma propriedade com 400 hectares não é, nem de longe,
uma pequena propriedade. O Código está beneficiando as pessoas
erradas.”
Por: Monica Prestes
http://acritica.uol.com.br
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