Os ruralistas vão deixando cair as máscaras uma depois da outra. Já não precisam mais disfarçar nada, pois sabem que estão com tudo e não estão prosa
Os
grandes jornais estamparam, na semana passada, a foto do bilhete da
presidente Dilma endereçado à ministra Isabela Teixeira (Meio Ambiente),
no qual extravasa um suposto descontentamento com o acordo fechado
entre o Palácio do Planalto e a bancada ruralista para aprovar a Media
Provisória (MP) do Código Florestal na comissão mista do Congresso que a
analisa. A imagem foi flagrada numa reunião em Brasília.
Segundo
o pequeno pedaço de papel, Dilma estaria preocupada com a alteração da
“escadinha”, o escalonamento na obrigação de recuperar as chamadas Áreas
de Preservação Permanente (APPs) às margens de rios e nascentes, de
acordo com o tamanho do imóvel – móveis menores recuperam menos (veja a tabela abaixo, feita com base no texto aprovado na comissão mista).
Oxalá
esse fosse o principal problema do texto aprovado na semana passada
pela comissão e o governo estivesse realmente preocupado com uma
legislação florestal coerente e eficaz para o país. Mas não é nada
disso.
Enquanto a ministra veio a público dizer
que não abre mão da “escadinha”, a bancada ruralista, com a benção dos
emissários do Planalto, destrói o chão sobre a qual ela está apoiada. O
texto aprovado – por unanimidade – acrescentou um item à MP que permite a
recuperação de nascentes e matas ciliares com “árvores frutíferas”:
laranjeiras, pés de café, mamoeiros e por aí vai. Não misturados entre a
vegetação nativa, o que já era permitido aos pequenos agricultores e
tem lá o seu sentido; mas inclusive na forma de monocultivos em grandes
propriedades.
A escadinha vai sair do nada e
chegar a lugar nenhum, pois uma plantação de laranja – exigente em
agrotóxicos para ser produtiva – pode ter muitas funções, mas não a de
proteger uma nascente ou servir como corredor de fauna ao largo de um
rio, como deveria ser uma APP.
Se a regra vier a
ser confirmada pelos plenários da Câmara e do Senado e a presidente não
vetá-la – algo bastante plausível – um determinado médio proprietário,
por exemplo, que, em 2007, tenha desmatado ilegalmente 30 hectares de
vegetação à beira de um pequeno rio, poderá se “regularizar” plantando
nove hectares de mamoeiros e explorando o restante da área com pasto.
Se
isso tiver ocorrido numa região de cerrado goiano, por exemplo, ele
terá colocado abaixo, ilegalmente, 30 hectares de vegetação com pelo
menos 50 espécies diferentes de árvores e mais centenas de outros tipos
de plantas, que serve de abrigo e fonte de alimentação para um
incontável número de espécies animais (de grandes mamíferos a pequenos
insetos). Em seu lugar plantará nove hectares de uma única espécie
(talvez algum capim se espalhe por debaixo, caso não exista “faxina
química” com agrotóxicos, como ocorre usualmente nessas plantações), que
servirão de abrigo e alimentação apenas para algumas espécies muito
generalistas de insetos e pássaros, os quais provavelmente serão
atacados de forma persistente com inseticidas para não danificarem a
colheita.
A MP foi editada em maio para suprir as
lacunas deixadas pela sanção parcial de Dilma ao projeto aprovado pela
Câmara para alterar o antigo Código Florestal. Pelas regras já
sancionadas e que agora são lei, esse pequeno rio terá suas margens
medidas na época da seca, e não da cheia, o que fará com que ele
“diminua” de tamanho, caindo de algo próximo a 15 metros para menos de
10 metros de largura. Esse médio proprietário, segundo as regras da MP,
teria de recuperar, então, 15 metros de cada lado do curso de água, ou
seja, 30% da área que em 2007 estava protegida por lei (50 metros em
cada margem). Com a regra acrescentada pelos parlamentares, esses 15
metros poderão ser uma monocultura de mamão.
Ah,
se essa propriedade estiver dividida em mais de uma matrícula e esse
proprietário cadastrar cada uma como se fosse um imóvel diferente no
Cadastro Ambiental Rural, fraude possível pela nova lei que já está em
vigor, o tamanho da “restauração” será bem menor, pois cada “sítio” se
enquadrará num degrau mais baixo da “escadinha”, no qual a obrigação de
restaurar é menor ainda.
Caminho do absurdo
A
criação de laranjais “produtores de água” não foi a única modificação
no texto da MP promovida pelos parlamentares. Eles também diminuíram o
tamanho da área de matas ciliares e nascentes a ser restauradas pelos
grandes proprietários, que agora passará a ser definido no caso a caso
por meio dos programas de regularização ambiental que serão criados
pelos estados. Essa é uma pauta antiga dos ruralistas: deixar para o
nível local a decisão de restaurar ou não. Além disso, diminuíram a
proteção às veredas e pequenos rios intermitentes – as nascentes desses
rios já estão sem proteção e podem ser legalmente desmatadas pela nova
lei em vigor. Aos poucos, vamos dando o adeus definitivo àquilo que um
dia chamamos de legislação florestal.
O acordo
fechado não surpreende, por mais absurdo que possa parecer – pelo menos
aos olhos de quem acredita que proteger nossas florestas faz algum
sentido. Quem acompanha a novela, já sabe seu final. Já não há mais
qualquer racionalidade nas discussões parlamentares sobre a nova
legislação “florestal”. Permitir “recuperação” de nascentes com cafezais
e de matas ciliares com laranjais é tratado como algo razoável, que
sequer suscita qualquer tipo de questionamento. Retirar a proteção à
vegetação responsável pela infiltração de água que alimenta as nascentes
da Caatinga e do Cerrado, justamente as que secam durante alguns meses
do ano em função do estresse hídrico, é algo comemorado. Determinar que
cada estado defina o quanto os grandes proprietários terão de
“recuperar” – se for com pés de mexerica, a palavra está equivocada –
das áreas de preservação irregularmente desmatadas, incentivando uma
“guerra ambiental”, é perfeitamente normal.
Bilhete em branco
O
que fica claro nessa história toda é que nenhuma das partes está
preocupada em ser coerente com o que diz, mas apenas em aprovar o texto o
mais rápido possível e ficar bem na foto.
O
bilhetinho de Dilma, embora escrito em letras garrafais para que todas
as lentes pudessem flagrá-lo, carece de sinceridade. O Palácio do
Planalto já tinha deixado claro suas intenções quando optou por assinar
embaixo da lista de desejos dos ruralistas e sancionar, com poucos e
irrisórios vetos, o projeto por eles elaborado, editando na sequência
uma medida provisória para repor parte daquilo que eles rejeitaram.
Até
Eremildo, o Idiota, sabia que aquilo era um golpe de marketing. Não
tinha nenhum compromisso em ser politicamente viável. Afinal, quem
poderia acreditar que, já tendo sido derrotado duas vezes pelos
ruralistas nesse mesmo assunto, sancionando uma lei com praticamente
tudo que eles queriam, o governo teria condições de negociar com os
ruralistas e garantir um texto cheio de coisas que eles não queriam? O
resultado, óbvio, está aí: mais e mais concessões, mais e mais prejuízos
ao meio ambiente.
Os ruralistas, por sua vez,
vão deixando cair as máscaras uma depois da outra. Já não precisam mais
disfarçar nada, pois sabem que estão com tudo e não estão prosa. Se no
começo da campanha pela revogação do Código Florestal clamavam por
regras que tivessem “base científica”, alegando que a lei revogada era
dela desprovida, agora fingem que não escutam as reiteradas advertências
feitas pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) às
regras que aprovaram. Ou alguém acha que a regra que permite plantar
laranja em nascentes é fruto de uma recomendação técnica embasada no
melhor conhecimento científico?
A senadora Kátia
Abreu, que até a sanção da lei pela presidente Dilma afirmava que os
maiores interessados na proteção de nascentes e riachos seriam os
próprios produtores rurais, na comissão especial estava na tropa de
choque que aprovou o fim das matas ciliares dos rios da Caatinga e
transformou as Áreas de Preservação Permanente em “Áreas de Plantações
Permanentes”. Agora ela já duvida publicamente da relação entre proteção
de florestas e produção de água. Com isso, ganhou o título de Doutora
Honoris Causa da Academia Brasileira de Filosofia. E uma forte indicação
para integrar o ministério da presidente Dilma.
Para entender as mudanças já aprovadas, que já são lei, veja tabela abaixo:
Raul Silva Telles do Valle é advogado e ambientalista do Instituto Socioambiental.
Artigo originalmente publicado no ISA
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