terça-feira, 17 de julho de 2012
Pouco conhecido em seu próprio país, ele é a mais respeitada liderança indígena brasileira (Entrevista - Davi Kopenawa Yanomami)
Pouco conhecido em seu próprio país, Davi Kopenawa Yanomami é a mais respeitada liderança indígena brasileira. Já foi premiado pela ONU, garantiu um território maior que Portugal para seu povo e tem biografia best-seller em francês. Em sua maior entrevista já publicada, fruto de dois dias de conversa, Davi fala da vida, da natureza e da falta de esperança no futuro: “Não tô triste não, eu tô revoltado”.
“O homem da cidade também vai morrer. Vai começar a sofrer, a brigar, a matar parente. Vai querer comprar floresta, vir com trator para cá e a destruição vai engolir todo mundo. Não é só o índio que vai morrer”
Difícil não sentir certa culpa conversando com Davi Kopenawa Yanomami. Durante os dois dias em que a reportagem da Trip acompanhou a rotina da principal liderança indígena brasileira, ele não aliviou em nada a barra pra nós, homens brancos, ou napë: aponta para a aliança do repórter para exemplificar como estamos acostumados com ouro, prata e outras riquezas naturais que vêm, por exemplo, do garimpo que há séculos destrói terras indígenas e mata seu povo. Não vê esperança no futuro, seja de índios ou do que chama de povo da cidade: “Ou vamos morrer queimados, ou vamos morrer afogados”. Critica todos os governantes do Brasil e do exterior, de ontem e de hoje, e acha que na Rio+20 não tiveram interesse em ouvi-lo. Não se cansa de repetir que os índios nunca foram respeitados e que brancos não entendem a importância de preservar a natureza. “Pra que vocês vão pra escola? Pra aprender a ser destruidor? Nossa consciência é outra. Terra é nossa vida, sustenta a barriga, é nossa alegria. É boa de sentir, olhar... é bom ouvir as araras cantando, as árvores mexendo, a chuva.”
Davi Kopenawa tem (estimados) 58 anos, vive na região da Serra do Demini, onde nasceu, perto da fronteira entre Amazonas e Roraima com Venezuela. Fica no hemisfério norte do globo, e lá se chega depois de duas horas de voo com um monomotor a partir de Boa Vista ou então após uma jornada de dez dias de barco da capital roraimense. Kopenawa viu de perto pai, avós, tios e praticamente toda sua família e centenas de outros “parentes” (como chama os demais Yanomami) morrerem de doenças vindas do contato com não indígenas. Parte chegou com missionários evangélicos que viveram em sua tribo por anos, e que quase o fizeram trocar as pajelanças por Jesus. Davi sobreviveu a essas epidemias e, adolescente, conseguiu libertar-se das crenças brancas e também resistir às tentações da cidade. Hoje é intérprete da Funai, pajé, chefe do posto indígena de sua região e presidente da Hutukara Associação Yanomami – “uma embaixada indígena junto ao homem branco”, explica.
Mas Davi Kopenawa é bem mais do que isso. É a mais respeitada e bem articulada liderança indígena brasileira, cujo trunfo é conseguir viver no tradicionalismo e foco proporcionado pela vida na aldeia e, ao mesmo tempo, ter a compreensão e o português necessários para entrar no jogo político da “nossa” sociedade. Dessa forma, com um pé em cada canoa, foi o principal responsável pela demarcação da terra Yanomami, que ocupa um território maior que Portugal e foi oficializada por Fernando Collor na época da Eco 92 –“ele foi obrigado por governos do mundo todo a fazer isso”. Já discursou na ONU e em outros fóruns internacionais e recebeu o prêmio ambiental Global 500 das Nações Unidas (único brasileiro além de Chico Mendes a receber a honraria). É bem mais conhecido e ouvido fora do que dentro do Brasil. Para se ter uma ideia, é verbete nas Wikipédias em inglês, francês, alemão e holandês, mas é ignorado na versão em português. Sua biografia La chute do ciel, escrita a partir de depoimentos ao antropólogo francês Bruce Albert, que o conhece há 30 anos, foi best-seller na França, onde foi lançada em 2010. Em tradução, está prevista para sair apenas em 2013 por aqui, pela Companhia das Letras. Esse senhor de pele morena e sorriso fácil, contudo, não dá a mínima para esse hype internacional. Desembarca de Londres ou dos Estados Unidos e vai direto para o meio do mato passar os dias sem roupa ao lado de seus “parentes”, distante de toda parafernália que costumamos chamar de civilização. Especialmente longe da língua portuguesa, que considera “um veneno” usado para manipular seu povo.
No primeiro dia com Davi, passamos mais de dez horas em meio a uma estradinha de terra ao sul de Boa Vista, cortando um trecho da terra Yanomami. Davi contornava uma desavença séria entre duas aldeias, que tinha começado por um mal-entendido e já tinha causado até morte. O líder conversou com um lado, com outro, foi ao mercado na vila mais próxima e levou comida para mais outros. Jornada intensa e extremamente cansativa, mas que Davi encara como parte de seu trabalho. O dia seguinte foi mais tranquilo, conversamos a maior parte do tempo na sede da Hutukara, à beira do enorme e belo rio Branco, que corta Boa Vista.
No fim do encontro, ficou a forte impressão de que ninguém se relaciona tão bem com a natureza como os povos que nasceram em meio a ela desde que surgiram no planeta. “Proteger isso tudo não é só prioridade do índio, é prioridade pra todo mundo”, fala Davi em seu papo reto Yanomami ao mesmo tempo incômodo, contundente e difícil de discordar. “A gente fala, mas branco não quer escutar, não. Temos que cuidar do nosso país, e de todo o resto. Planeta existe só um, não tem outro. Se acabar com este aqui, se destruir tudo, vai dar pra mudar pra outro?”
“A onça procura na pedra um bom buraco para viver. Macaco é a mesma coisa. O mutum fica nas árvores, onde a natureza quiser. Mas o homem branco precisa ter geladeira, freezer, cama, telefone. São costumes bem diferentes”
Como é seu trabalho de defesa do povo indígena? O principal é a Hutukara Associação Yanomami [da qual Davi é fundador e presidente], que tem oito anos. Eu pensei e sonhei pra criar a Hutukara. Ela não tem ligação com a Funai e defende terra, saúde, cultura, o direito do povo Yanomami. E não só de Roraima.
Então ajuda as aldeias Yanomami da Venezuela também? Sim, todos são meus parentes. Conheço e falo em nome deles, mas não trabalhamos lá, damos apoio de longe. E a situação é bem pior que aqui. Venezuela não protege o povo Yanomami. Tem terra pra viver, mas não tá demarcada, governo de lá não quer, então tem bem mais garimpo que aqui.
E qual a diferença entre a forma de o povo indígena ver a natureza e a terra e a forma que os outros veem? Nós somos bem diferentes. O povo da terra é diferente. Napë, o não índio, só pensa em tirar mercadoria da terra, deixar crescer cidade... Enquanto isso o povo da terra continua sofrendo. Olha aqui em volta [aponta para território Yanomami ao sul de Boa Vista, o qual estávamos atravessando], tudo derrubado. Fazendeiro desmata para criar boi, vender pra outros comer e ele ganhar dinheiro. Aí pega dinheiro e continua desmatando, criando boi, abrindo mais fazendas... Napë só pensa em dinheiro, em botar mais madeira ou o que for pra vender, negociar com outros países. Nós pensamos diferente. A beleza da terra é muito importante pra nós. Do jeito que a natureza criou tem que ser preservado, tem que ser muito cuidado. A natureza traz alegria, a floresta pra nós índios é muito importante. A floresta é uma casa, e é muito mais bonita que a cidade. A cidade é como papel, é como esse carro aí na frente: branco, parece um papel jogado no chão. A floresta não, a floresta é diferente. Verde, bonita, viva. Fico pensando... por que homem branco não aprende? Pra que vão pra escola? Pra aprender a ser destruidor? Nossa consciência é outra. Terra é nossa vida, sustenta nossa barriga, nossa alegria, dá comida é coisa boa de sentir, olhar... é bom ouvir as araras cantando, ver as árvores mexendo, a chuva.
E é mesmo o garimpo o principal problema das terras indígenas em Roraima? Sim. Aqui não tem muito madeireiro, é mais garimpo. Mas tem fazendeiro também, nesta estrada mesmo tem [Diametral norte, estrada de terra que cruza essa parcela do território Yanomami]. Tem garimpo de ouro e diamante. Na comunidade Ericó e no Surucucu é só ouro. Mas é pior no Homoxi, Xidei e na Maloca Paapiu: lá é o coração do garimpo. E no alto do rio Catrimani também. [Todas localidades em terra indígena demarcada.]
E essa situação sempre foi assim, nenhum governo fez nada pra ajudar? Foi bom no governo Collor, ele tirou 40 mil garimpeiros da terra Yanomami, dinamitou mais de cem pistas [de avião clandestinas] e demarcou tudo. Mas ele fez isso porque foi pressionado por outros governos do mundo todo, era época da Eco 92. Mesmo assim garimpo só parou cinco meses. Depois foi voltando. Isso acontece porque o homem garimpeiro não tem terra e na cidade não tem serviço pra ele, então fica viciado em garimpar terra indígena. O governo tirou eles, mas não ofereceu lugar pra garimpeiro viver, trabalhar plantar, criar peixe, boi... então ele volta.
E os outros presidentes? Lula tomou posse e não fez nada para o Yanomami, mas fez para outros povos, criando a Raposa Serra do Sol [reserva com mais de 1,7 milhão de hectares no norte de Roraima, onde ficam aldeias Ingaricó, Macuxi, Patamona, Taurepangue, Yarebana e Uapixana]. E eu falei com ele duas vezes, olhando nos olhos. Governo atual também não faz muito, então continuo lutando. O problema é que cada governo deixa pra outro resolver e aí ninguém faz nada. É como panela suja. Se você não lava, o outro também não lava, e só vai piorando.
Seu primeiro contato com brancos foi com pastores, com eles você aprendeu português. Como foi isso, e como é hoje a presença de igrejas nas comunidades? Isso enfraqueceu, minimizou. A igreja que eu conheci e vi foram os crentes, pastores da Inglaterra, Estados Unidos e Canadá que chegaram na minha comunidade e ficaram lá morando com a gente, pregando evangelho para os Yanomami, mas a gente não conseguia entender. Eu era pequeno, tinha 10 anos. Pastor chegou com mulher e filho, aprendeu nossa língua e começou a dar aula de religião e ler Bíblia em Yanomami. Primeiro eu achava interessante. Falavam que deus mandou eles pra nossa terra, que mandou pra ajudar a não brigar, não fazer guerra e não fazer pecado.
E o que era pecado? Não sei direito o que é pecado... significa que não pode, parece... Eles diziam que não podia brigar, não podia mentir e não podia namorar.
Mentir e brigar tudo bem, mas sem namorar é difícil, hein?... [Risos] Pois é, todo ser humano namora. Mas eles falavam que tinha que ser assim, porque aí Jesus ia voltar pra nossa terra e todo mundo ia pro céu.
Mas você acredita em outra coisa, não? Foi Oman [divindade indígena] que criou tudo. E quando surgiu a Terra, surgiu homem da floresta. Todos nós somos filhos de Oman, Ele tá aqui mas ninguém vê. Olha só, governo federal pensa que o que tem embaixo da terra é dele, mas eu não acredito. Sou Yanomami, filho de Yanomami, como vou achar que governo é dono de tudo que tá debaixo da terra? Eles que inventaram isso. Mas nós conhecemos o dono da terra.
E como você deixou os pastores de lado e voltou para Oman? O pastor queria acabar com nossa pajelança, queria colocar evangelho no lugar do pajé. No começo eu acreditava, mas depois cresci, tinha 15, 20 anos, e descobri que o pastor fez o que falou pra todo mundo não fazer: pastor fez pecado. Namorou índia e não gostei. Falou que era pecado, mas pecou. Namorou minha prima. Então falei: “pastor, você é muito mentiroso, você tá errado, não acredito mais em você”. A partir daí comecei a pensar melhor e retornar ao meu criador Oman. Eu tava quase esquecendo, quase não acreditava mais... Hoje não quero mais evangélico com meu povo, não aceito que venha catequizar. Mas tem comunidade que tem pastor, tem padre.
Depois disso, mais tarde, você acabou virando pajé... Não conheci meu pai, ele morreu de doença quando eu era pequeno, minha mãe me disse. Desde pequeno sofri junto do meu povo. Morreram muitos parentes de sarampo, malária, tuberculose, doenças de branco que matam até hoje. Morreu irmão, avô, tia... aí fiquei revoltado com homem da cidade. Mas eu sou protegido do grande pajé, então sobrevivi e passei a ser lutador. [E depois daquele episódio com os pastores] Comecei a falar com meu grande pajé, que chama Lourival e é meu sogro. Ele tá vivo, mora na aldeia. Eu precisava da força da natureza. Aí fiquei um mês só tomando yãkoãna [planta alucinógena ministrada pelos pajés] até conseguir sonhar. Sonhei com xabori, o espírito da floresta, e foi muito bom. Essa é a minha raiz, e ele falou pra eu ficar com ele.
Então você faz trabalhos de cura, rituais? ... Sim, faço trabalho de cura com yãkoãna. Chamo o xabori e ele fica junto comigo, aí curo meus filhos, minha mulher, meus irmãos. Só uso yãkoãna pra dar uma luz, pra conseguir ver. Assim que nós pajé usamos, é a tradição.
E você já fez outros rituais xamânicos com outras plantas, como ayahuasca? Já experimentei ayahuasca, foi interessante, aprendi muito. Mas é muito forte, você toma cinco copos e fica muito tempo [sob o efeito do alucinógeno]. Com yãkoãna é mais rápido, mesmo que você tome dez sopradas [um composto da erva é soprado no nariz por outra pessoa, com um canudo comprido]. Mas com muitas sopradas você cai no chão, começa a se vomitar e se cagar tudo... [Risos]
Amanhã você embarca para a Rio+20, o que você espera do evento? Tô esperando um milagre [risos]. O governo é o chefão, e se governo não der ordens pra ajudar povo indígena, não adianta nada. A invasão das nossas terras têm mais de 500 anos e continua. [Ao final da Rio+20 falamos novamente com Davi, dessa vez por telefone. Ele tinha participado de alguns encontros, como um, a portas fechadas, entre o secretário-geral da ONU Ban-Ki-Moon e 12 lideranças indígenas brasileiras. Não saiu muito feliz: “Para salvar o planeta os brancos precisam mudar seu pensamento e sua maneira de agir. Vim pra a Rio+20 porque os povos da floresta podem ajudar a fazer essa mudança. Mas pouca gente teve interesse em me ouvir”]
“Eu já quis ser branco. Pensei: ‘tô na cidade, sei andar na rua, de carro, comer de garfo e faca, vejo televisão, vou procurar mulher branca pra mim’. Hoje não tenho dúvida: sou Yanomami. Posso usar roupa, usar sapato, mas minha alma não é falsa”
As terras indígenas somam cerca de 13% do território nacional e praticamente metade da Amazônia. Há quem acredite que com o crescimento da população mundial esse espaço todo tá começando a chamar mais a atenção do mercado, dos brancos... Você sente isso? Já pensei nisso faz tempo. O branco... não gosto de chamar de branco sempre, chamo Napë. Então, Napë tá crescendo muito, cidade cresceu, e também veio muita gente de fora. Na Europa não tem mais terra, então eles chegam aqui, e só aumenta população do povo não índio. Estamos preocupados, é problema sério. Muita gente acostumou com isso aqui [encosta na aliança do repórter], quer ouro, prata e pedras preciosas. E também terra boa pra fazer tijolo, tirar madeira... O que a natureza colocou embaixo da terra virou como mulher nova. Todo mundo quer olhar, quer usar, todo mundo quer comer. E também falam que é do governo, mas governo não plantou, não, a natureza que pôs ali. Aqui em cima é pro índio fazer roçado, plantar macaxeira, banana, cana... alimentação indígena. Mas branco quer tirar mercadoria da terra, já aprendi faz tempo esse pensamento. Napë não quer preservar a natureza, cuidar da terra. Só quer destruir, tirar riqueza da floresta, negociar madeira pra país onde não tem. E ainda tem problema de biopirataria e garimpeiro. O nome já diz: garimpagem, fazer buraco... Mataram meu povo por conta de ouro e diamante. Querem fazer brinco de pedra pras mulheres deles ficarem bonitas e enfeitar casa, enfeitar loja, enfeitar tudo... o pensamento, o mundo todo do branco é assim.
[O carro passa pela porteira de uma fazenda em território Yanomami] O que essa proximidade das fazendas e dos brancos representa para os índios? Tem muito fazendeiro, arrozeiro, plantador de soja. Lá no Xingu, por exemplo, a terra Tikuna tá toda cercada de fazenda de soja. E soja é muito ruim pra terra, acaba com cabeceira de rio. E isso é importante não só pro índio, cabeceira de rio é importante pra todo mundo. E agora os filhos do povo da terra não crescem mais como antigamente, não querem mais viver nas comunidades... O Xingu tá ficando assim, eles saem da aldeia e vão pra cidade. Aí ficam uma semana, acostumam logo e não querem voltar.
Por que não querem voltar, o que atrai tanto na cidade? Pra nós o costume da cidade é muito forte, manipula nosso pensamento. A língua portuguesa é um veneno. É um veneno que entra na cabeça e faz esquecer a comunidade, mãe, pai... a cidade destrói o pensamento da comunidade. Aí não pensa mais como caçar, na aldeia, não pensa em nada. Índio novo só quer saber de celular, TV, CD, jogo, festa, carro, internet. Tudo isso manipula índio, pensamento dele fica na máquina. E caiu na máquina já era, não tem mais como retornar. Eu sei porque comigo quase foi assim.
E como você conseguiu evitar as tentações da cidade? Eu queria ser branco. Sou Yanomami, mas pensei: quero virar branco. Tô na cidade, sei andar na rua, de bicicleta, de carro. Tô olhando televisão, comendo comida “de plástico”, usando colher, garfo, tudo. Eu tinha uns 14 anos, era novo, foi quando fiquei um ano ou dois em Manaus. Morava na casa de um amigo e achava bonito aquilo, não queria mais voltar pra aldeia. Pensava até: “Vou procurar mulher branca pra mim”. Mas meu amigo falava: “olha, Davi, aqui na cidade é diferente, você não pode pensar que vai casar. Mulher branca é difícil, quer casa própria, carro, celular, televisão, roupa nova, dinheiro no banco”.
Mas chegou a namorar alguma mulher branca? Não, nenhuma.
E como você voltou para sua aldeia? A Funai me levou de volta pra minha casa. Eu que procurei eles, tava com saudade demais dos meus irmãos todos e queria muito voltar. Meu amigo que morava comigo me orientou a voltar. Aí depois eu ficava lá um pouco e um pouco na cidade, porque virei intérprete da Funai, deram emprego pra trabalhar com meu povo. Hoje não tenho dúvida: sou Yanomami. Posso usar roupa, usar sapato, mas minha alma é de Yanomami de verdade. Não é falsa.
Davi, estamos aqui falando de destruição, problemas... será que não tem um acordo pra salvarmos a Terra? Como não tem outra Terra, nosso povo também é só um, nós e vocês. Então precisa sentar pra trocar ideia. Discutir junto como usar nosso planeta e nosso país, que é tão rico, tão bonito e tem água limpa. Mas homem de São Paulo, Inglaterra ou dos Estados Unidos não quer saber de manter terra viva, a floresta em pé. Quer derrubar tudo e fazer mercadoria. Mas tem que pensar no futuro, no que vai acontecer com as futuras gerações, ou daqui a cem anos nosso planeta vai virar um campo de futebol, sem árvore, pássaro ou água limpa, sem beleza nem índio. E quando acabar índio e floresta, aí vai ser o fim do mundo.
“O homem da cidade também vai morrer. Vai começar a sofrer, a brigar, a matar parente. Vai querer comprar floresta, vir com trator para cá e a destruição vai engolir todo mundo. Não é só o índio que vai morrer”
E como você imagina que vai ser a vida do povo indígena daqui a algumas décadas? Acho que vai acontecer o pior. O povo da terra vai sofrer. Daqui a cem anos nem vai chegar, povo indígena está cercado. Meus filhos estão aqui, mas meus netos os brancos vão tentar comprar. Não índio sabe enganar, mentir. Vai querer ser amigo, dizer que índio tem que mudar, que assim vai melhorar. Mentira. O branco que tem dinheiro passa bem. O que não tem dinheiro passa mal. Sem liderança e sem terra índio vai sofrer mais do que hoje, vai começar aprender português, a gostar da cidade. Índio cai fácil, não tem resistência pra defender cultura dele. Hoje nossos filhos já tão na escola, usam roupa, corta cabelo como o de vocês, usa perfume, celular... Então, fico preocupado com o futuro.
Você não vê nenhuma esperança? Vejo alguma esperança, mas se nascer líder tradicional. Pra garantir nossa sobrevivência precisa liderança da aldeia. Liderança indígena que mora na cidade não vai cuidar do povo dele, não. Minha esperança é que que venha mais igual eu, igual Raoni, Aílton Krenak... lideranças da comunidade pra continuar defender, brigar e divulgar.
Você chegou a conhecer essas outras lideranças indígenas, como o cacique Raoni? Considero Raoni meu tio. Sou amigo dele. Ele mora em Altamira, é Kaiapó. Conheci quando comecei a lutar e fui convidado para um encontro de lideranças indígenas em Brasília, aí conheci outros líderes como ele, o Aílton Krenak, Álvaro Tukano, Paulinho Paiakan.
E índio na política, como o cacique xavante Mário Juruna, faz falta? O Juruna foi deputado federal, mas não fez muita coisa. Foi branco que elegeu ele. Se tivessem sido os índios, os parentes, ele ia durar mais. Acho que ele foi comprado com dinheiro... É bom ter mais índio na política, mas tem que ser índio mesmo, da aldeia. Alguns parentes Macuxi e Wapixana tentaram se eleger, mas não conseguiram. Eu mesmo pensei em me candidatar, mas não ia ter dinheiro pra andar de carro e fazer campanha. Eu ia sair pelo PT.
Pensa em se candidatar em alguma eleição no futuro? Tô pensando, mas não tô querendo muito não. Eu até quero ser amigo dos políticos, mas eles não querem ser meus amigos... então vou continuar enchendo o saco dos políticos. [Risos]
Sua história não é comum, nem seu dia a dia. Você nasceu na fronteira com a Venezuela, vive lá até hoje, mas passa períodos na cidade, viaja pela Europa... Como faz para manter suas raízes? Minha casa é no Demini [serra no território Yanomami, entre Roraima e Amazonas], moro lá. Fico em Boa Vista uns dois meses por ano. Isso se não tiver problema de garimpo, de saúde, invasão. Se tiver, fico mais pra resolver, mas quando chega a hora sempre volto pra aldeia. Aqui a Hutukara é como embaixada Yanomami, representa nosso povo junto aos brancos. Antes homem branco olhava pra baixo pra falar com índio, agora é olho no olho, pra isso nasceu a Hutukara Associação Yanomami. Pra lutar melhor, pra falar com jornalista, falar com televisão, fazer documento pra mandar pra autoridade.
Como você vem da sua aldeia pra cá? De monomotor. Dá umas duas horas. E dá para ir de barco também. Você sai daqui, desce até Caracaraí pelo rio Branco. Vai até Barcelos, pega o rio Negro subindo e vai indo até minha casa. Leva uns dez dias.
Você falou da preocupação com o futuro do seu povo. E o futuro do homem que vive na cidade grande, como imagina que vai ser? Ele vai morrer. A cidade é uma briga. Briga entre branco. Tão roubando, não tem lugar pra trabalhar, o que comer... Vai começar a sofrer, a brigar, matar parente. E aí vai querer comprar pedaço da floresta, crescer pra cá. O costume do branco é esse faz já centenas de anos. Vai pensar: terra indígena é muito grande, vamos lá pegar. Aí vai vir trator, máquina pesada. Máquina vai vir como cobra grande que engole todo mundo. Não é só índio que vai morrer, não, todo brasileiro vai perder, destruição vai engolir todo mundo, passar aplainando a floresta. Não vai ter mais árvore, pássaro, água limpa, nada... a briga de vocês vai ser por água.
Muita gente fala: “mas pra que os índios precisam de tanta terra?” ... Sempre falam isso. Primeiro, nós precisamos crescer também. Se o governo cuidar da nossa saúde, nossa população cresce. E também porque somos nômades, é o costume. Quando eu era pequeno, habitamos quatro lugares. Fica um ano ou dois, aí terra e caça ficam fracos e índio muda. Branco não muda, só deixa cidade aumentar. E fala: “índio precisa de terra grande pra fazer o quê? Ele não produz”. Mas nossa terra não precisa produzir. Vai vender o quê? Pra onde? Já tá tudo produzido faz tempo: a caça, os peixes, os rios, as árvores, tá tudo lá pro índio usar, até remédio tá lá.
O povo indígena vive na floresta desde sempre. Nessa convivência tão próxima com os animais, há algo que você aprendeu com eles? Nós temos aldeia e caçamos, e eles também caçam e têm lugar pra viver. Para fazer oca usamos conhecimento tradicional, pegamos folha, cipó e fazemos. E a casa da onça, como é? Ela procura na pedra um bom buraco pra viver. Macaco é a mesma coisa. E mutum? Fica nas árvores, porque é ali que a natureza quer que ele fique. O peixe, a mesma coisa, fica no rio. Jabuti, cotia, todo bicho é assim, todo tem casa na natureza como nós. Você tem também, mas aí é diferente. Você tem cama, geladeira, freezer, telefone, banheiro pra cagar dentro de casa, chuveiro pra tomar banho dentro da casa, são costumes bem diferentes. Nós tomamos banho no rio.
“Não tem outro planeta. O povo da terra também é um só, nós e vocês. Então precisa sentar para trocar ideia. É preciso pensar no futuro, sobre como usar nosso planeta e nosso país que é tão rico e bonito e tem água limpa”
E você tem visto alguma mudança climática? Falam que tá poluído, que mudança climática tá chegando, que tá chovendo ou não tem chuva, tá mais quente... Isso tudo é o erro do branco se mostrando. Aumenta a população, a quantidade de carro, avião, fábrica, óleo. Aqui em Boa Vista mesmo há alguns anos teve tempo seco como nunca. Secou muita floresta e aí acabaram desmatando. Tenho dois pensamentos: ou vamos morrer queimados, ou vamos morrer afogados. Mulher fala na televisão onde tá chovendo ou não e fala que é natural, mas povo não acredita. Uma vez encheu o rio e vieram perguntar o que Davi achava. Eu não acho nada, você que acha, isso é erro de vocês, sou Yanomami e tô defendendo país, vocês que tão envenenando o ar.
Não sou indígena e tenho um filho de 1 ano e meio. O que você recomenda que eu ensine pra ele? Vocês têm que ensinar o filho pequeno qual é o caminho certo. Tem muitos caminhos, mas ele precisa aprender a proteger o país dele. Não sou eu nem você, é ele que vai proteger o Brasil. Então põe em escola com professor bom, pra ele pensar e aprender que o que é bom pra nós é bom pra vocês também.
Estávamos falando de bebida... esse é um dos problemas trazidos pela proximidade dos homens brancos? A bebida é um problema geral, não é só do índio. É um dos piores problemas que temos na cidade, nas comunidades, em todo lugar... E não vai acabar nunca. O povo da terra adotou o costume, primeiro era caxiri [bebida alcoólica indígena à base de mandioca], agora é cerveja, cachaça.
E outras drogas como maconha, cocaína ou crack, já chegaram às aldeias? Talvez em outros povos. Por aqui não, mas vai acontecer. Com índio andando junto com homem branco vai acabar acontecendo.
Índios têm relação diferente com o tempo. Li que não há certeza sobre sua própria idade, por exemplo... Não estou preocupado com minha idade. Nós não contamos, só sei mais ou menos. Falam que é 58 anos, mas calculado [aproximado].
Então nem comemora aniversário... Não tem isso de aniversário, festa, bolo. Nem me preocupo com isso, tô é preocupado com meu filho, com meu neto.
Qual a principal lição que nós, Napës, deveríamos aprender com a natureza? Tem metade da população de não índios que já tá escutando, aprendendo, começando a falar em preservação da natureza. Mas ainda é pouco. O índio tem que falar mais e vocês têm que escutar mais. Temos que lutar juntos. O mais importante é ter aliança, não ficar com preconceito, não ficar inimigos. E lembrar que árvore não é carne, não tem que fazer nada, árvore é só deixar lá que já tá conservado.
[De repente, uma raposa corre na frente do carro, desviando a atenção de Davi, que só admirou o animal. Bem diferente de quando um tatu havia cruzado a pista minutos antes, provocando gritos de “Atropela!”, de Davi e do motorista, os dois de olho na carne do animal.]
Tatu eu sei que é gostoso, mas raposa é bom de comer, Davi? [Rindo] Raposa não é muito bom não, mas por aqui caçamos anta, porco-do-mato, mutum, arara, queixada, papagaio, jabuti, paca, jacaré...
... Cobra também? Se não acha mais nada, come cobra.
E onça? Claro! Onça é melhor que cachorro-quente!
* As grafias e forma de usar as palavras indígenas foram checadas pelo ISA e seguem as convenções da Associação Brasileira de Antropologia.
* Agradecimentos: Moreno S. Martins, Marcos de Oliveira e todo o pessoal do ISA (socioambiental.org) e a todos da Hutukara Associação Yanomami (hutukara.org), em especial Maurício Yekuana.
Davi Kopenawa Yanomami na TV Trip
Texto por Lino Bocchini, de Boa Vista
13.07.2012 |
Fonte: Revista Trip
www.gvces.com.br
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