terça-feira, 2 de outubro de 2012

Animais viviam melhor que trabalhadores em fazenda-zoológico no Maranhão

Em Santa Inês (MA), fazendeiro mantinha pequeno zoológico com bichos bem tratados, e criação de gado com 12 empregados em situação análoga à de escravo; processo trabalhista pode chegar a R$3 milhões 



Vitória é uma zebra rara: vive entre pessoas e tem acesso livre à casa do seu dono, o fazendeiro Francisco Gil Alencar. Ele é proprietário de um mini-zoológico em Santa Inês (MA) cujo nome lhe presta uma homenagem: o "Gilrassic Park". Além de Vitória, o parque conta com 900 outros bichos de 100 espécies diferentes, principalmente aves e animais silvestres, que recebem acompanhamento especializado de um zootecnista.

A pouco mais de cinco quilômetros do Gilrassic Park, na mesma propriedade, a situação de 12 empregados de Francisco Gil era bem distinta: eles foram resgatados de condições análogas às de escravo pelo grupo móvel de fiscalização, em inspeção no fim de março deste ano. A vistoria contou ainda com membros do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Os libertados trabalhavam sem carteira assinada ou equipamentos de proteção individual (EPIs), fazendo o roçado manual do pasto dos bois da Fazenda Coronel Gil Alencar, onde fica o Gilrassic Park, em condições absolutamente subumanas e degradantes.


Alojamento de estrutura frágil onde trabalhadores dormiam amontoados em redes

Segundo a fiscalização**, o alojamento dos trabalhadores ficava no meio do mato, em espaço geograficamente isolado e sem meio de transporte disponível. Para chegar ao grupo de 12 escravos, a equipe percorreu uma longa trilha a pé a partir do quilômetro 30 da rodovia BR-222, através de um matagal e de uma estrada alagada. Eles vasculharam um extenso terreno de pastagem por cerca de duas horas até encontrar o barraco onde estavam os empregados, nas margens de um igarapé.


Os trabalhadores dormiam no mesmo terreno da pastagem dos bois. O alojamento tinha somente a cobertura de uma lona preta e alguns maços de palha, sem paredes laterais ou qualquer tipo de proteção contra animais peçonhentos, chuva e outras intempéries. Ainda não havia nas redondezas lugar adequado para as necessidades fisiológicas de um ser humano.



Diferença entre "dietas"

Enquanto os animais de Francisco Gil recebiam ração balanceada e supervisão nutricional, os empregados sequer tinham proteína de carne em sua dieta. “Eles estavam cozinhando de forma precária e irregular. A alimentação era baseada no carboidrato, só de arroz e feijão”, disse a auditora fiscal do trabalho que coordenou a ação, Márcia Albernaz Miranda, à Repórter Brasil.

Todo dia pela manhã, por volta das 6 horas, o grupo de trabalhadores recebia café e uma massa de farinha de milho cozida pelo “gato”, supervisor dos empregados. Alguns deles comentaram com os auditores que preferiam tomar só o café e trabalhar com fome até o almoço, tão ruim era a mistura. Por volta das 11h, eles faziam uma pausa no serviço para comer arroz e feijão – às vezes, só um ou outro. No final da tarde, depois de um dia de trabalho sob o sol maranhense, recebiam mais uma porção da mesma comida.
Alimentação separada para os animais

A única fonte de água a que o grupo tinha acesso era proveniente do pequeno igarapé em torno do alojamento, onde também bebia, defecava e urinava o gado bovino. O líquido, de coloração amarela e impróprio para o consumo, era usado pelos trabalhadores para beber, cozinhar e para higiene pessoal.

Na sede da propriedade, a ração dos animais do Gilrassic Park é armazenada em depósitos com regulação térmica e, depois de receber um complemento de frutas e verduras frescas, servida em comedouros higienizados.

“Os animais viviam melhor que os empregados da fazenda de gado”, avalia a coordenadora da inspeção. “Aqui no Maranhão, a gente não costuma ver um zoológico com toda essa estrutura”, completa.

MPT processa fazendeiro
A procuradora do MPT que acompanhou a fiscalização preferiu não firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o fazendeiro. Christiane Nogueira, membro da procuradoria do trabalho da 16ª região (PRT-16), resolveu mover uma ação civil pública postulando danos morais coletivos diante da dimensão do caso, da gravidade das irregularidades e da natureza das violações.

A ação foi protocolada na última quarta-feira (26) na vara do trabalho de Santa Inês (MA), do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª região (TRT-16). A disparidade entre a situação dos 12 empregados e a dos animais do mini-zoológico é um dos pontos destacados pelo documento.

O MPT pede indenização por danos morais coletivos de R$ 3 milhões, que devem ser enviados a entidades e projetos assistenciais ou ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). No processo a PRT-16 pede ainda que o empregador regularize as condições na fazenda que levaram aos 26 autos de infração lavrados pelos auditoria fiscal do trabalho.

“Gato” só conhecia o patrão pelo nome
Entre o grupo de 12 empregados libertados estava “Zé Pretinho”, o “gato” responsável por delegar tarefas e pelo aliciamento dos outros 11 escravos. Ele trabalhava em períodos descontínuos para a fazenda de Francisco Gil há 10 anos, mas disse aos fiscais que em todo esse tempo nunca encontrou o patrão pessoalmente.

“Zé Pretinho” recebia um salário um pouco maior – em torno de R$ 12 por linha de trabalho, enquanto os outros recebiam R$10 – mas, como os demais, costumava receber o pagamento atrasado ou com descontos. As ferramentas para o trabalho eram compradas pelos próprios empregados, que, com o pagamento atrasado e insuficiente, somavam dívidas com o empregador.

A renda mensal de todos ficava abaixo de um salário mínimo. “Mesmo tendo o cargo de supervisor, não dá para dizer que Zé Pretinho estava em uma situação de vantagem frente aos outros trabalhadores”, afirma Márcia.

O “gato” aliciava os trabalhadores, que viviam próximos da casa de sua família, nas imediações do município de Santa Inês (MA). Uma vez por ano, Zé Pretinho reunia conhecidos da vizinhança para trabalhar com ele no roço manual do pasto da fazenda Coronel Gil Alencar.

Depois do resgate, foram expedidas as carteiras de trabalho dos empregados. Eles foram encaminhados a um alojamento apropriado, até que a situação fosse regularizada. No dia 31 de março, o grupo recebeu as guias de seguro-desemprego a que tinha direito. O empregador arcou com um custo em torno de R$ 39 mil pela rescisão contratual com os 12 funcionários.

A Repórter Brasil procurou o fazendeiro Francisco Gil para comentar o caso, mas ele não estava na propriedade. Uma funcionária do zoológico disse que passaria o recado a Francisco Gil, mas até a publicação desta matéria, ele não havia entrado em contato.

Questionado sobre a regularidade da posse de animais silvestres, o supervisor do escritório do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Santa Inês (MA), José Alfredo Carvalho Santos Filho, disse à Repórter Brasil que “todos os animais do Gilrassic Park são registrados”. “Todo fim de ano, o Francisco Gil apresenta uma lista com a situação dos animais, e o Ibama acompanha”, afirma José Alfredo.

Francisco Gil poderá ser incluído na “lista suja” do trabalho escravo – registro mantido pelo MTE com empregadores que já usaram mão-de-obra em condições de escravidão contemporânea. A criação de gado bovino é o segmento econômico mais recorrente no cadastro de nomes “sujos”, 158 de um total de 391 entradas

Trabalhador mostra recipiente com água que ele e colegas eram obrigados a beber

Por: Guilherme Zocchio, com a colaboração de Bianca Pyl.


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