quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

A trajetória de Sônia Guajajara na luta contra as ameaças aos direitos e à identidade de seu povo


“Quanto maior é a autoridade, mais força eu tenho para enfrentar”
 
Sônia Guajajara na época do incêndio florestal na Terra Indígena (TI) Arariboia, no Maranhão, o maior registrado em terras indígenas no Brasil, em outubro de 2015


No Salão Nobre do Palácio do Planalto, em Brasília, cerca de trinta cadeiras coloniais de madeira estavam dispostas lado a lado para a edição de 2015 da Ordem do Mérito Cultural, uma cerimônia que homenageia importantes figuras que compõem a cultura brasileira. Tomando seus assentos, via-se desde músicos, atores e escritores a representantes do candomblé e índios.

Sentado ao lado do palco, de onde se desmembrava uma passarela branca que percorria todo o salão, avistei Sônia Guajajara, uma das principais lideranças indígenas do Brasil. Tentei chegar até ela para agradecer o convite ao evento quando as luzes se apagaram para dar lugar à luz das pequenas lâmpadas instaladas ao longo de toda a passarela.

A presidente Dilma Rousseff chamava os homenageados e os condecorava. Um a um, eles percorriam toda a passarela serpenteando o público presente. Em sua vez, a índia guajajara de 41 anos entregou para a presidente uma camiseta com a estampa PEC 215 Não, e conseguiu que Dilma posasse para a foto oficial com a mensagem sobre o peito.

Ao final da cerimônia, pude alcançá-la. “Conseguiu tirar as fotos?”, e eu fiz que sim. “Você não tirou nenhuma comigo sorrindo né? Porque eu queria estar séria. Nada de sorrir para a presidente”.




“VOCÊ NÃO TIROU NENHUMA COMIGO SORRINDO NÉ? PORQUE EU QUERIA ESTAR SÉRIA. NADA DE SORRIR PARA A PRESIDENTE”

“Eu nasci no povoado de Campo Formoso, que apesar de ser área indígena, ficou fora do limite de demarcação da Terra Indígena (TI) Arariboia, no Maranhão. Era um espaço de convivência entre os índios e não-índios, sendo que muitos se casavam entre si”.

Estamos sentados sob a sombra de uma árvore, ao lado do moderno prédio da Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Soninha conta que esse é o caso dos seus pais. De um total de oito, ela é a segunda filha de um não-índio com uma guajajara.

“Trabalhava com meus pais na roça, fazia de tudo. Plantava arroz, milho, mandioca. Colhia também, ia apanhar feijão, quebrava milho. A gente fazia muita farinha e vendia. Era a nossa renda. Meu pai sempre foi muito trabalhador, mas dizia que a gente tinha que estudar, e não ficar ali. Essa fase durou pouco tempo, porque, nos povoados vizinhos, só tinha escola até a 4ª série. Com dez anos fui com um grupo de indígenas estudar em outro município. Eu também sempre pensei para fora, queria viver coisas diferentes do que a gente vivia lá. Sempre me chamaram de espoleta”.

Depois de completar o colégio no município de Amarante, no Maranhão, Sônia foi fazer o colegial em Minas Gerais.
“Eu e meu colega éramos os únicos índios na escola e a gente ouvia perguntas do tipo ‘o que que come lá?’, ‘índio come gente?’. E eu tinha o maior orgulho de falar da minha cultura, de falar como era a vida e como a gente fazia. Tanto que, no grêmio estudantil, eu sempre fazia uns trabalhos sobre questão indígena. Olha que curioso, eu nem sabia que ia viver isso aqui hoje, ainda mais liderando um movimento, mas na época eu já fazia apresentação na escola simulando invasão de terra. Então a gente simulava fazendeiro ou madeireiro entrando, e eles pegavam as índias, levavam ou amarravam, sabe? Colocavam as meninas e os meninos para se vestir de índio. Ficou tão bom que a gente foi apresentar em outras escolas!”.


Sônia Guajajara se junta ao Greenpeace na entrega do Projeto de Lei pelo Desmatamento Zero, no Congresso Nacional (DF), ao lado dos artistas Caio Blat, Jorge Pontual, Paulo Vilhena, Maria Paula, Marina Person, Luísa Matsushida e Valesca Popozuda, em outubro de 2015 - Foto: ©Adriano Machado/ Greenpeace

– Soninha, você já tem 17 anos e o colegial completo. Te chamei aqui na minha casa para dizer que a partir de hoje você vai ser a nossa representante mulher. Eu sempre participei muito dos encontros indígenas e já viajei o bastante. Eu vou te apresentar para as entidades e os parceiros que trabalham com a gente e dizer que a partir de hoje é você que nos representa. Agora isto é seu.

De volta ao seu povoado natal, a jovem índia assumia sua missão de vida ao receber de sua tia Maria Santana Guajajara um cocar de penas e um colar – o símbolo de uma grande liderança.



Sônia Guajajara durante Mobilização Nacional Indígena, que teve apoio dos artistas Maria Paula e Tony Guarrido, em maio de 2014 em Brasília

No gramado a nossa volta, dezenas de índios descansam após um protesto no Anexo II do Congresso Nacional, onde ficam as comissões parlamentares. Com a aprovação da PEC 215 no fim de outubro, comitivas de diferentes povos do Brasil inteiro se revezam para vir à Capital Federal pressionar a dita Casa do Povo contra o projeto que ameaça paralisar de vez a demarcação de terras indígenas. Soninha, como é conhecida, dedica um pouco de tempo para falar com cada parente indígena e depois volta à história.

“Eu sempre li muito bem e escrevi também. Diziam que eu lia cantando. Então tudo que falavam eu anotava e, no fim, eu tinha uma ata pronta. Com uns dezoito anos, eles começaram a me chamar para as reuniões aqui em Brasília. Mas nunca deixei de estudar. Fui fazer um curso de medicina natural no interior de São Paulo e voltei para prestar assistência nas escolas da rede pública de Imperatriz [MA]. Virei professora e subdiretora da escola. Nisso, um servidor da Funai falou que eu tinha que voltar a estudar, se eu não queria ir fazer um curso de auxiliar de enfermagem. A Funai fez minha matrícula, e me mudei para Imperatriz. O curso durou um ano e meio, mas a Funai parou de pagar, e comecei a dar aula de português em uma escola pública e também em uma particular”.

Outra comitiva de índios chegava à Procuradoria-Geral da República, onde uma Audiência Pública, promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), iria debater a PEC 215 e a demarcação de terras no Brasil. Assisti aos grupos de indígenas se juntarem e seguirem rumo à entrada do auditório enquanto entoavam em alto volume suas músicas tradicionais.

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A gravidez era tranquila. E apesar do calor, a baixa incidência de doenças na Aldeia Canudal (TI Arariboia), onde Sônia atendia como enfermeira no posto de saúde, não afetava sua gestação. Mas logo sua barriga somava oito meses de espera, e era hora de voltar para Imperatriz, onde seu marido a aguardava. Apesar de serem recém-casados, Lindomir trabalhava na cidade e Sônia em Canudal, então pouco se viam.

– Não vai ter caminhão para levar a gente até o ponto do ônibus. O jeito é ir a pé – disse Leia Guajajara, sua amiga professora. Ela e Welington, seu marido e também professor, acompanham Sônia em uma caminhada de quinze quilômetros até onde sai o transporte para a cidade de Imperatriz.

Com suas bagagens nas costas, mãos e cabeça, caminharam sob o sol sempre forte do Maranhão durante uma manhã inteira ao longo de uma estradinha de terra. A área é de floresta, o que ajuda um pouco com as sombras, mas a via é realmente péssima, esburacada, tem pedras e, para completar, muita ladeira.

Finalmente, chegaram ao ponto, e depois de mais algumas horas, Sônia enfim alcançou Imperatriz. Após aguardar o mês final de gestação, o casal seguiu para o hospital e se instalou na sala de parto. Depois de toda a espera e a sofrida caminhada de sua mãe, Itaniara precisou de apenas cinco minutos para nascer.


“Apesar de não sermos nós que estamos poluindo [o meio ambiente], que estamos degradando, pode ser que a solução para isso [mudanças climáticas] esteja no nosso modo de vida” – Sônia Guajajara na Cop 20, em Lima (Peru), em 2014

* * *
Encontro com Soninha em seu hotel às 8h da manhã de uma sexta-feira chuvosa em Brasília. No dia anterior, ela havia participado de uma mesa de debate com duração de sete horas. Alguns indígenas se concentram no salão principal, à espera da saída da comitiva. Sônia conversa com a maioria, um a um.
Junior Xucuru, um jovem indígena que ajuda na atuação constante de pressão no Congresso, se anima na conversa: “Toda vez que Soninha liga, preparo logo a lancheira e ligo para um advogado, sempre que a gente sai com ela ou passa fome e sono ou preso ou apanha da polícia”.
Após acertar os últimos detalhes da saída, ela se senta comigo num sofá do mezanino, em um lobby mais afastado.
“Com dois anos ela ficou um mês doente e não aguentou. Depois que minha filha morreu, eu não conseguia ficar em casa. Saía do trabalho na APAE [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais] e ficava dando voltas com os ônibus para não voltar para casa. Por outro lado, eu foquei muito no trabalho e fiz faculdade de letras da Universidade Estadual do Maranhão. Fiz concurso público de professora pelo município de Imperatriz e fui dar aula na própria APAE.

Em 2001, tive a oportunidade de participar de um encontro indígena em Brasília. Não foi a primeira vez na cidade, mas foi a primeira vez que eu participei do movimento nacional. Cheguei na coordenação do evento e perguntei como eu podia ajudar. Depois de fazer algumas atas e relatórios, me indicaram para participar de um encontro do Movimento Negro, na Bahia. Eu nem pedi licença para a diretora da escola, nem avisei em casa, nada. Fui para Porto Seguro e isso mudou o rumo da minha vida.

Foi aí que eu vi todos os temas, todas as pautas à respeito das minorias. Fiz um discurso, fui aplaudida e me apaixonei. Mas fiquei numa inquietação tão grande que quando voltei para o Maranhão comecei a trabalhar para estabelecer a COAPIMA [Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão].”
* * *
Após seis anos se destacando como secretária de coordenação da COAPIMA e dividindo metade do seu salário de professora com uma amiga que a substituía na escola para poder trabalhar na causa indígena, Soninha recebeu o convite para concorrer como secretária de coordenação da COIAB, que é a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira.

“Secretária de novo? Eu não. Fui concorrer a vice-coordenadora, eu queria ir para a disputa. E no meu discurso, fui muito aplaudida. No fim, se somassem os votos dos outros dois que concorriam a vice-coordenador não dava o total que eu recebi.

Aí eu mudei para Manaus, isso em 2009. Fiquei quatro anos, que é um mandato. Foram quatro anos dedicados exclusivamente ao movimento indígena. Fui para os encontros de clima (COP) no estrangeiro, ocupamos a Transamazônica, o canteiro de obras de Belo Monte. Se a COAPIMA foi meu ensino médio, a COIAB foi minha faculdade e meu mestrado. Foi nesse ponto que comecei a ser considerada uma liderança indígena nacional.”

Em 2013, já mãe de Luiz Mahkay, Yaponã e Ywara, Soninha começou a trabalhar com a PEC 215 e se tornou coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Foi na Apib que se deu o pontapé inicial para as mobilizações de rua. Pela primeira vez na história o plenário da Câmara foi ocupado. Dali se criou um Grupo de Trabalho (GT) paritário entre os indígenas e parlamentares para discutir a PEC 215.

“Esse GT trabalhou durante 5 meses realizando várias discussões e audiências dentro da Câmara dos Deputados, e concluiu um relatório declarando a inconstitucionalidade da PEC. Mesmo assim o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, disse ter compromisso firmado com a bancada ruralista, e que a proposta iria tramitar.
É muito mais difícil agora, mas eu gosto mais. Aqui em Brasília, você está em enfrentamento direto com deputado, olha nos olhos desses políticos. Eu me sinto muito bem fazendo isso. Tenho um negócio que quanto maior é a autoridade, mais força eu tenho para enfrentar”.
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Sento num restaurante chinês com a antropóloga Luciene Pohl, uma grande amiga de Soninha dos tempos da COIAB. Quando o assunto é a sua amiga guajajara, o que impera são histórias hilárias das duas. Mas destaca uma última que, segundo ela, ganha de todas as outras.
“Você não sabe a última que essa maluca foi fazer. Cantou um rap num show do Criolo, B Negão e KL Jay, em São Paulo. Eles fizeram um evento bem legal pelos direitos indígenas e contra a PEC 215. E a Soninha subiu no palco e puxou a música do Criolo: ninguém vai me frear, ninguém vai me dizer o que eu devo fazer nessa porra.

Ela praticamente fez um show. Depois deu uma aula sobre a PEC 215 para todo o público. Era para falar dez minutos mas falou vinte e cinco. E a galera fez coro. É a Soninha né, não tem jeito.”

Sônia Bone Guajajara
Nascida em 1974
41 anos
Cidade natal: Povoado de Campo Formoso, Terra Indigena Arariboia, Maranhão
Cidade atual: Imperatriz, Maranhão
Formação: Letras, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Cargo atual: Coordenadora Executiva da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)
Cargos anteriores: COAPIMA (Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão), Casai (Casa de apoio à saúde do Índio), COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais).
Filhos: Luiz Mahkay, Yaponã e Ywara Guajajara 



http://revistagreenpeace.org/edicao/4/inspiracao/


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