Da
Rua dos Pretos, no bairro do Guamá (rio que chove), em Belém, emerge
uma cidade formada a partir de migrantes, boa parte deles oriundos do
Maranhão. E a fusão entre os múltiplos brasis semeou uma série de
manifestações culturais na região.
A
cidade é uma cidade de cidades misturadas. A tragédia, às vezes, é que
trás a face oculta à tona: incêndio das casas de madeira, alagamento por
conta das chuvas, execução de jovens ou o tráfico de drogas. Da Rua dos
Pretos, no bairro do Guamá (rio que chove), em Belém, emerge uma cidade
formada a partir de migrantes, boa parte deles oriundos do Maranhão. Os
maranhenses representam quase 5% da população do Pará. Destes, 92% se
identificam como negros ou mestiços, sinalizam dados do IBGE (2010).
A
historiografia explica que no Brasil colônia, após a criação do estado
do Grão Pará e Maranhão (1751) por Marquês de Pombal (Sebastião José de
Carvalho e Melo), o tráfico de escravos para as lavouras de cana e arroz
ganhou maior proporção. Já o ciclo da economia da borracha (1879 -1912)
é considerado um marco no processo migratório para a região, em
particular de nordestinos, que ganhou maior proporção na segunda metade
do século XX, com a integração econômica da Amazônia ao resto do país.
A
fusão entre os múltiplos brasis semeou uma série de manifestações
culturais na região. Irmandades religiosas, boi bumbá, quadrinhas
juninas, terreiros de umbanda e candomblé, carimbó, e as escolas de
samba Arco-Iris (1982) e a Bole-Bole (1984) integram a realidade
artística do Guamá e vizinhança, conformada pelos bairros de São Braz,
Canudos, Terra Firme, Condor e Cremação.
Entre
os bairros da cidade, o Guamá é o bairro mais populoso. O rio homônimo o
irriga. A região cortada por canais e banhada pela baía do Guajará
nasceu a partir da ocupação irregular de áreas públicas, em particular
de órgãos federais, como a Universidade Federal do Pará (UFPA), Museu
Paraense Emílio Goeldi (MPEG), a antiga Faculdade de Ciências Agrárias
do Pará (FCAP), atualmente Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)
e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O setor de
Segurança Pública do estado considera o perímetro como zona vermelha.
Localizado no extremo sul da cidade, o Guamá é resultado da ocupação
desordenada, onde pobreza e a violência integram o cotidiano.
Informação
do projeto Pobreza e Meio Ambiente (Poema) da UFPA divulgada em 2012
atesta que 200 mil moradores do Guamá e Terra Firme sobrevivem com
metade do salário mínimo por mês. A informalidade absorve a maior parte
da mão-de-obra. A concentração de renda que estrutura a economia do
país, aqui também se replica. Pesquisa coordenada pelo antropólogo
Alfredo Wagner Berno de Almeida constatou que 96,28% da população da
região metropolitana de Belém absorvem 24,80% da renda, enquanto uma
minoria, isto é, 3,72% da população abocanham 75,20% da renda gerada.
Baixo
nível de escolaridade, desemprego, subemprego, violência, precário
serviço de abastecimento de água e ausência de saneamento básico
conformam a aquarela da pobreza. O esgoto corre a céu aberto entre as
ruas estreitas, onde predomina uma arquitetura de madeira. Não raro,
depara-se com um templo evangélico. A água da chuva do dia anterior
inunda algumas vias. Às vezes em que a chuva é intensa é comum o
transbordamento do canal dos Mundurucus. Ali perto fica a Rua dos
Pretos.
Rua dos Pretos
O
canal é uma referência para se encontrar a Rua dos Pretos, alcunha da
Rua Bom Jesus I. Trata-se de uma via com no máximo duzentos metros.
Padaria e botecos sem grandes atrativos integram a paisagem do lugar.
Casas e comércios são protegidos por grades. Em qualquer dia da semana
alguns habitués consomem cerveja, e peixes ardem em tachos. Nos finais
de semana meninos jogam futebol nas ruas que apertam o canal, enquanto
os mais velhos celebram o dia de folga ao som do brega, do samba ou do
reggae. Os canais que serpenteiam a cidade compõem a realidade da
várzea. Neles o lixo é figura frequente.
Relatos
de moradores mais antigos narram que a ocupação da várzea iniciou na
década de 1980. Ana Guedes é maranhense da cidade de Cururupu, é uma das
pioneiras na ocupação do bairro. Ela afirma que tudo era mato. E que
ali existiam pouco mais de cinco barracos. Muitos moradores assentaram
residência em áreas de constantes alagamentos. A ocupação ajudou a
sufocar igarapés e rios. Guedes rememora que um grupo de pessoas
organizava uma ação de ocupação do lugar. Engrossou o coro dos
ocupantes, e apanhou umas tábuas, enfrentou dificuldades, encarou a
polícia e foi ficando.
Há
três décadas a animadora cultural mora na área. Veio para tratamento de
saúde. Operar para deixar de ter filhos. Um casal de médicos a
apadrinhou. E não voltou mais, a não ser para festas. Na época promover a
laqueadura era moeda de troca de políticos. “Eu vim através dos meus
patrões, eles que me trouxeram para cá. No prédio Manoel Pinto da Silva
foi o único e primeiro edifício em que eu trabalhei pra gente rica aqui
em Belém. O apartamento era o 1402, do casal Dr. Antônio Fernando e Dona
Célia, uma família de médicos” conta Guedes.
A
personagem analisa que tinha muito filho. Procurou Belém para
tratamento. A migrante recorda que o médico em Cururupu ficava distante
de onde morava, e que as condições eram precárias. Ela não lembra com
quantos anos veio para Belém, mas pelas contas deveria ter uns 24 a 25
anos. Ana realizou a cirurgia de laqueadura de trompas.
45%
de mulheres em idade reprodutiva estavam esterilizadas no Brasil
indicavam os dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar
(PNAD/1986) do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Por conta do quadro, na década de 90 foi criada uma Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) para examinar a esterilização em massa. O
Maranhão era o estado com maior incidência, alcançando a média de 79,8%.
A CPMI concluiu que o método mais utilizado como contracepção é
esterilização realizada durante cirurgia de cesariana.
O
relatório destacou que o movimento negro nacional foi o pioneiro a
denunciar a esterilização de mulheres negras e pobres, como prática de
racismo no Brasil. Contudo, os dados do IBGE não confirmaram a acusação.
No entanto, o relatório apontou que o maior percentual de mulheres
esterilizadas encontra-se em Estados de regiões do país com maior índice
de miséria e pobreza, e onde há um contingente populacional de maioria
negra.
Nos
grotões a situação não foi extinta. Em 2011 o Supremo Tribunal Federal
(STF) condenou o deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB\PA) a três anos
de reclusão e multa no valor de R$ 7.630,00. O deputado foi penalizado
por promover laqueadura durante a eleição de 2004, no município de
Marabá, sudeste do estado. O parlamentar cooptava as mulheres a partir
da entidade PMDB Mulher. A esposa e uma enteada participavam da
empreitada.
Ana Guedes – A animadora cultural
Guedes
é uma das muitas maranhenses que povoa o local. É uma senhora negra de
60 anos de idade. Como ela, a maioria dos moradores tem a mesma cor. Daí
a designação pelos vizinhos de Rua dos Pretos ou Rua dos Maranhenses.
16h de uma tarde ensolarada. Acordamos a franzina senhora, dona de raros
cabelos grisalhos. Ela é mãe de 10 filhos e adotou mais quatro
crianças, fruto de relações extraconjugais do falecido marido. Ao todo
são 19 netos. Metade dos filhos é evangélica. Ana conta que eles pedem
que ela abandone as manifestações católicas e de matriz africanas. Ela
resiste.
José
Ribamar, conhecido como “Fumaça” o irmão de Ana foi a primeiro a ser
chamado para morar em Belém. Alguns netos moram com ela. A casa é um
híbrido de madeira e alvenaria, onde o abastecimento de água funciona
somente durante a noite.
Os
pés descalços enfrentam um terreiro em desordem. Pedras aguardam
cimento. A reforma prepara a casa para celebrações religiosas. Ela mora
numa vila acanhada, que abriga outros parentes. É a serelepe senhora
quem anima algumas celebrações religiosas, entre elas Nossa Senhora da
Guia, festejada no mês de agosto, e São Benedito. O santo negro é o
padroeiro do Tambor de Crioula, manifestação tipicamente maranhense de
matriz africana.
O
folguedo tem sido um canal de conformação da identidade dos
maranhenses, e elemento que aglutina os migrantes em torno do coletivo
Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de Cururupu. O grupo tem perto de
cinquenta pessoas. Uma imagem de Nossa Senhora da Guia ocupa lugar de
destaque na casa de Guedes, que acomoda uns instrumentos nos cantos da
casa. Os tambores foram grafitados por jovens do bairro e de outras
localidades da cidade. Um coletivo tem animado mutirões culturais
durante todo o ano na periferia de Belém. Cosp Tinta, Casa Preta,
Traumas Vídeos e Literatura Marginal fazem parte da trupe.
Em
uma das apresentações do grupo Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de
Cururupu no terreiro Axé-Rundembo Di Jaci Luango, no boêmio bairro da
Pedreira, estava presente artista-mestre Tião Carvalho. O cantor e
compositor é conterrâneo de Ana Guedes. Há muito tempo radicado em São
Paulo, reside no Morro do Querosene, no Butantã. O autor de Nós, canção
gravada por Cássia Eller esteve em Belém para participar do projeto
Jamberesu – Interações Estéticas na Afro-Amazônia, em parceria com
Mana-Maní ReCriando a Dança da Vida. Engrossou o coro dos cantadores do
grupo. Ao mesmo tempo Guedes rodopiava a saia de chitão colorido.
Tambor de Crioula
A
percussão se impõe na manifestação de matriz africana natural dos
quilombos do Maranhão. Escravos arrancados da África, provenientes do
Guiné, Costa da Mina, Congo e Angola ajudaram a compor as matrizes
culturais do estado. Os três tambores feitos a partir da madeira do
mangue, do pau d'arco, do soró ou do angelin são cobertos com couro de
animal. Quando das celebrações por promessa, festa ou entre amigos, o
tambor é afinado a fogo e tocado com as mãos. O conjunto de tambores é
conhecido como parelha.
O
tambor maior (rufador ou roncador) faz a marcação, enquanto os menores
solam. É comum um brincante tocar duas matracas ou tábuas sobre o
suporte de madeira do instrumento maior. O menor dos três é conhecido
como crivador, e o do meio ou chamador, tratado como “meião”. O papel
dos homens é tocar e entoar as canções, enquanto as mulheres dançam e
acompanham o canto. A tradição é que as mulheres mais velhas
protagonizem a dança. Elas são tratadas como coreiras.
A
dança é circular, e marcada pela punga ou umbigada. Uma espécie de
saudação entre as mulheres, quando uma toca o ventre da outra. Em alguns
locais do interior do Maranhão é comum a punga ou a rasteira entre os
homens. Assim como outras manifestações de matriz africana, a dança foi
tratada como caso de polícia. Uma brincadeira de negro e de pobre.
As
roupas de chitão de flores coloridas vestem os participantes da
manifestação. A saia é indumentária fundamental do ornamento feminino.
São Benedito é o santo homenageado. A brincadeira é comum em áreas
rurais e nas periferias de São Luís e, e mesmo entre a classe média. Há
na capital do Maranhão perto de 80 agremiações. Leonardo Martins,
Laurentino Araújo, Nivô e Felipe são os mestres mais conhecidos.
Manifestações similares existem no país, a exemplo da congada, do
carimbó e do jongo.
Filhos e Amigos de Cururupu
O
cururupuense “Moita”, 38 anos, como é conhecido Raimundo Márcio Santos
Rodrigues é o animador do Tambor de Crioula Filhos e Amigos de Cururupu,
que existe há quatro anos no bairro do Guamá. A manutenção do grupo é
garantida graças ao empenho dos integrantes, que ficam responsáveis pela
aquisição da madeira e do couro.
Além
das apresentações que fazem no bairro e em outros cantos da cidade, o
coletivo repassa o conhecimento ancestral a partir da realização de
oficinas para crianças e adolescentes.
José de Ribamar - o Homem Reggae
Assim
como no Pará é comum batizar as mulheres com o nome da padroeira do
estado, Nazaré, no Maranhão é recorrente batizar os homens com o nome de
José de Ribamar, o principal santo do estado mais empobrecido da União.
O principal exportador de tensão social do país, como explica o
antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida. Miséria e a tensão na luta
pela terra são os motivadores para a migração. A lógica da migração
reside no pioneiro puxar os demais entes da família. O poeta Ferreira
Gullar, o cantor e compositor Zeca Baleiro e o ex-presidente Sarney são
os mais ilustres ribamares do estado.
Ribamar
ganha a vida como pedreiro e dono de bar. O maranhense negro de
estatura mediana tem 54 anos. É pai de três filhos, fruto de dois
casamentos sem papel passado. O bar fica na parte inferior de um sobrado
de alvenaria, que fica perto da casa da irmã Ana. Ela explica que ele
pensa somente em trabalho.
O
pedreiro é considerado um dos pioneiros na discotecagem de reggae em
Belém. A capital do Pará adotou a sonoridade do merengue, cúmbia, salsa e
afins, difundida em ondas tropicais das emissoras de rádio, enquanto
São Luís e outras localidades do Maranhão assimilaram o reggae.
Apesar
de fincados na capital paraense, o maranhense mantém o vínculo com a
terra natal. Quando ocorrem as festividades de São Sebastião no início
do ano, perto de cinquenta ônibus de migrantes seguem para Cururupu. Ana
Guedes conta que as aparelhagens invadem a cidade. É mais fácil ouvir
brega que uma “pedra”, o termo é usado para designar um reggae de raiz.
Um clássico, onde figuram Bob Marley, Jacob Guille Miller, a banda UB40 e
Gregory Isaacs.
Escolinha do Reggae
Ribamar
Guedes comanda o Bar Escolinha do Reggae há 24 anos. O local é um porto
seguro para o encontro dos nativos de Cururupu, e para os adeptos do
ritmo nascido na Jamaica. O operário e comerciante é simpático, e sempre
sorri ao receber pesquisadores e jornalistas. “Cheguei aqui com 18
anos. Os irmãos mais velhos vieram na frente. Quando voltavam para a
nossa cidade, falavam de Belém. Ficava curioso. Vim atrás de trabalho.
Fiz a vida aqui e só volto para visitar os parentes que ficaram lá’
conta o regueiro.
A
parte inferior do sobrado do Guamá acomoda o bar. O leptop toca
clássicos do reggae. O pedreiro louco pela música jamaicana é conhecido
no circuito de DJ´s do estilo da cidade. Entre eles Rás Margalho.
Ribamar se desfez dos vinis e aderiu à tecnologia do mundo digital. Vez
em quando organiza um reggae em sua casa ou uma roda de tambor de
crioula. “Não cobro a porta. Apenas vendo a minha cerveja. Às vezes as
pessoas fazem festa aqui. Quando organizo uma festa de reggae, a casa
lota e as ruas ficam cheias de carro”, narra o entusiasmado senhor.
Além
do sobrado Fumaça tem mais duas casas na região metropolitana de Belém,
no município de Ananindeua. A mãe e outros irmãos moram na Alça Viária,
um local de saída para outras regiões do estado. Vem para o Guamá
somente no fim de semana. É cedo. A casa ainda não está cheia. A turma
consome cerveja e joga dominó. Todos são negros. Assim como outras
pessoas que conversam nas portas das casas. Algumas crianças adotam o
cabelo trançado, enquanto umas mulheres chapeiam a cabeleira.
As raízes
O
mestre de obras é filho de Bacuri, município próximo a Cururupu. É uma
das regiões mais empobrecidas estado, o Litoral Ocidental Maranhense,
localizado ao norte do estado, que faz fronteira com o Atlântico. O
agrônomo Edmilson Pinheiro informa que a economia do lugar teve como
base a cana, arroz, milho, engenhos e gado. Africanos de Douro e Daomé
(Guiné) configuraram a origem do braço escravo. Ele conta que Cururupu
fica próximo aos municípios de Mirinzal e Guimarães. Cidades marcadas
pela presença de quilombos.
O
técnico interpreta que municípios como Bacuri, Cururupu, Carutapera e
Godofredo Viana, às vezes possuem mais laços com Belém, do que com a
capital maranhense, São Luís, tanto que existem linhas diárias de ônibus
Cururupu\Belém.
A
origem do nome Cururupu possui duas explicações: a primeira resulta da
junção do apelido do cacique Cabelo de Velha “Cururu” com o som da arma
que ele usava “pu”. Conforme o dialeto tupinambá, o nome da cidade
significa “sapo grande”.
Parcel
de Manoel Luís, Reentrâncias Maranhenses e a ilha dos Lençóis são os
principais atrativos turísticos do município. Manoel Luís é uma reserva
marinha conhecida por abrigar um banco de corais, navios e galeões
afundados pelas fortes correntezas. Já os Lençóis ficaram celebrizados
pelas dunas e a lenda de rei de Portugal, D. Sebastião que encarnaria na
figura de um touro negro encantado. Tambor de Crioula, Bumba Meu Boi,
Pastores de Reis, Caixa do Divino Espirito Santo e Festa de São Benedito
constam no caleidoscópio cultural de matriz africana.
Por: Rogério Almeida e Lilian Campelo
www.cartamaior.com.br
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