quinta-feira, 19 de março de 2015

2014 bate recorde de conflitos pela água e famílias envolvidas

 Autor: divulgação


Desde 2002, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) faz o registro dos Conflitos pela Água no campo. Antes desta data, já desde o início da publicação do Conflitos no Campo Brasil, em 1985, entre os conflitos por terra registravam-se os conflitos gerados pelas barragens para construção de hidrelétricas ou outros pequenos açudes. A decisão de registrar distintamente deu-se, exatamente, pelos cenários desenhados à época, tanto em nível nacional, como internacional, em que se vislumbrava que a disputa pela água se acirraria no mundo inteiro. Era o estabelecimento da chamada “crise da água”.

Aquilo que era um cenário, hoje é realidade na vida de milhões de pessoas ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Porém, há uma novidade surpreendente que não estava no script dos vários experts no assunto, isto é, a crise urbana da água. Essa é a novidade no Brasil de hoje. Vamos aqui nos ater a uma análise dos Conflitos pela Água no campo, nos últimos dez anos, entre 2005 e 2014, período em que o crescimento dos conflitos por esse bem essencial a todas as formas de vida cresceu de forma evidente. Em 2014 foi registrado o maior número de conflitos pela água e de famílias envolvidas nos últimos dez anos.

Neste período de 10 anos, 322.508 famílias estiveram envolvidas em conflitos pela água.


O ano de 2014 foram 127 ocorrências desse conflito, envolvendo 42.815 famílias. Se multiplicarmos pelo número médio de cinco pessoas, que compõe uma família rural, conforme metodologia do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, então 214.075 pessoas estiveram envolvidas nesse tipo de conflito nesse ano.
Ranking dos 10 últimos anos

Ao longo dessa década, observa-se que o número de famílias atingidas tem sido maior nos estados onde há grandes projetos de “desenvolvimento”. O Pará é o estado com o maior número de famílias envolvidas nesse período (69.302), a maior parte por conta da Construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Além disso, o chamado “Complexo Hidrelétrico Tapajós”, que prevê a construção de sete usinas ao longo dos dois rios, no oeste do Pará, vai impactar diretamente 32 comunidades tradicionais, entre quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas e cerca de dois mil quilômetros de território indígena, principalmente da etnia munduruku.

O Rio de Janeiro ficou em segundo lugar no número de famílias envolvidas nesses dez anos, devido, sobretudo, à implantação do complexo industrial da Companhia Siderúrgica do Atlântico, um empreendimento que envolve Vale, Thyssen Krupp e CSA. Somente neste conflito estão envolvidas mais de oito mil famílias. Nesse período foram 66.687famílias envolvidas nesse tipo de conflito no estado, ficando atrás somente do Pará.

Minas Gerais, com 26.179 famílias envolvidas, vem em terceiro lugar, praticamente todas em conflitos com Barragens e Açudes, que envolvem o Governo Federal e empresas nacionais e internacionais como a Mineradora Carpathian Gold, Manabi S/A, Anglo American, Kinross Gold Corporetion, Ferrous Resource, SAM, Sada Bioenergia. Rondônia vem a seguir, com o envolvimento de 23.312 famílias, em conflitos, em sua maioria, com a construção das Usinas de Jirau e Santo Antônio.

Pelo que se vê deste quadro, o maior número de conflitos no período de dez anos são os provocados pelo Uso e Preservação da água (346), seguido de perto pelo de barragens (325), e, com menor incidência, o de apropriação particular (86).

Conflitos urbanos

Enquanto escrevemos essa análise, o cenário que se desenha cada vez mais grave atinge as cidades. Milhões de cidadãos de São Paulo já estão numa labuta diante da falta de água que atinge milhares de residências. E o mesmo já se sente no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Já em abril de 2014, a previsão era a de que 200 cidades do interior de São Paulo poderiam enfrentar racionamento, sendo que a situação mais grave era a dos municípios da região de Campinas e Piracicaba. Se somarmos, simplesmente, a população do Rio de Janeiro, São Paulo e interior de São Paulo, teremos aí uma população de 37,8 milhões de brasileiros urbanos, de alguma forma envolvidos nesses conflitos. Mas os conflitos urbanos se estenderam, ainda, por Minas Gerais, principalmente no vale do São Francisco e praticamente por toda região Sudeste, manifestando-se de forma veemente em 2013, particularmente no Semiárido Brasileiro. A falta de água em centros urbanos médios e grandes obrigou governos estaduais e federal a fazerem obras rápidas para abastecer pessoas no seu uso cotidiano. Uma delas foi a Adutora Pajeú, que já abastece sete cidades de Pernambuco, está projetada para prover mais 14 do mesmo estado e outras oito cidades da Paraíba. O total de pessoas beneficiadas é, até agora, de aproximadamente 177 mil.[1]

Adutoras semelhantes a essa foram feitas em pleno sertão baiano, como a que ligou a cidade de Irecê às águas do São Francisco, ou ainda, a de Guanambi, com a mesma finalidade. Dessa forma, os governos federal e estaduais deram razão aos lutadores do São Francisco quando esses defendiam que, ao invés de obras monstruosas como os canais da Transposição, se aplicasse os recursos em adutoras simples que levam a água diretamente para os sistemas de abastecimento municipais, como já diagnosticara e propusera a Agência Nacional de Águas (ANA).

Embora tantas vezes diagnosticado e previsto, o fenômeno urbano da escassez da água surpreendeu as autoridades e a população. Agora, ou mudamos a governança da água, ou seremos vítimas permanentes dos desgovernos. A principal solução apresentada pelos neoliberais na questão da água era sua privatização, com a consequente mercantilização e precificação desse bem comum. Em outros lugares do mundo a solução já fracassara, como Paris e Cochabamba, na Bolívia. Agora, o fracasso tornou-se brasileiro. A solução para a crise hídrica instalada não está em tecnologias de ponta e novas obras. Elas só ajudarão na superação do problema se uma ética anterior de respeito pelo ciclo das águas for instaurada na governança hídrica brasileira.

Múltiplos cientistas afirmam constantemente que teremos que manter a Amazônia em pé para que ela continue injetando rios aéreos na região sul e sudeste. Se perdermos definitivamente o Cerrado – e vários estudiosos nos dizem que já o perdemos -, então viveremos das águas de enxurrada das chuvas, já que nossos aquíferos do Planalto Central, que fazem o armazenamento e a distribuição das águas brasileiras, perderão definitivamente sua capacidade de regular a chamada “vazão de base”, que alimenta nossos rios em tempos sem chuvas. Já dizia Guimarães Rosa, “a água de boa qualidade é como a saúde e a liberdade, só tem valor quando acaba”.

Mais Informações:

Cristiane Passos (assessoria de comunicação CPT Nacional) – (62) 4008-6406 / 8111-2890
Elvis Marques (assessoria de comunicação CPT Nacional) – (62) 4008-6414
[1] http://blog.planalto.gov.br/adutora-do-pajeu-traz-agua-para-o-sertao-nordestino.
*Edição do texto analítico de Roberto Malvezzi, que será publicado na íntegra na edição, ainda inédita, do relatório anual da CPT, Conflitos no Campo Brasil 2014.


http://www.cptnacional.org.br/

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