sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Retomada: o quilombo que renasceu na escola





A resistência na comunidade Nazaré se dá dentro da sala de aula. A escola é parte importante da permanência dos quilombolas no território. Foto: Fernando Martinho
Nada lembra uma escola tradicional. Tudo o que os alunos aprendem tem relação com o dia a dia da comunidade. Amazônia e Cerrado ganham destaque nos debates em torno dos biomas brasileiros. A riqueza da juçareira, do babaçu e do tucum é usada como estímulo para a batalha pela preservação ambiental. Incentivar os estudantes a refletir sobre a importância da cultura e da espiritualidade de seus ancestrais é o ponto de partida para a valorização da identidade quilombola. Na sala de aula ampla e sem paredes do Quilombo Nazaré, na baixada ocidental maranhense, a cultura de origem africana é tratada com respeito. Nesse espaço, orixás, encantados e caboclos convivem em paz com divindades católicas. “A gente não camufla o que nos fere”, diz a professora Leidiane Santos Reges, de 30 anos, para quem um importante ensinamento começa com a mudança de vocabulário sobre o passado colonial: “Não fomos escravos, fomos escravizados”.
O Centro de Ensino Fundamental Nossa Senhora de Nazaré, onde Leidiane leciona, se tornou referência não só em educação e cultura, mas também na elaboração de uma resistência que mistura identidade e território. “A retomada do nosso território se dá via educação”, explica a professora. Ela se refere ao ensinamento cotidiano sobre a importância de permanecer nas terras ocupadas por seus antepassados e ao direito de viver a identidade quilombola. Viver da caça e da pesca, em casa de taipa, tocar tambor e praticar a espiritualidade trazida pelas religiões de matriz africana compõem um modo de vida que precisa do território para existir.
“A defesa do território é feita pelas próprias comunidades porque elas não podem esperar pelo Estado”, alerta Clemir Batista, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Isso acirra os problemas. O Maranhão é um dos líderes em conflitos agrários no Brasil e os povos tradicionais estão no foco.”
Gil Quilombola, de 37 anos, irmão de Leidiane e articulador-geral do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), já foi ameaçado de morte três vezes. O estado é a unidade da federação com o maior número de processos de regularização instaurados no Incra: 377. Mas o órgão titulou apenas três territórios desde 2003, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou um decreto regulamentando a questão. Nesse contexto, as próprias comunidades estão tomando para si a função resistir, fincando o pé nos territórios, mesmo sob ameaça – processo conhecido por retomadas.
“A gente tem consciência de que vai ter que defender o território na lei ou na marra. Se não der na lei, vai ser na marra”, garante Gil. Apesar da morosidade na regulamentação fundiária dos territórios, ele sabe que a legislação brasileira reconhece à sua comunidade o direito de posse a partir da autoidentificação como quilombola. “Se for preciso dar o próprio peito pra bala a gente vai fazer. Não tem outra alternativa”, afirma.
“A defesa do território é feita pelas próprias comunidades porque elas não podem esperar pelo Estado”, alerta Clemir Batista, da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Levar essas questões para dentro da classe funcionou como um chamariz. Os alunos ficaram mais interessados, a comunidade foi estimulada a participar e novas professoras surgiram na região. “Estamos formando quilombolas, porque antes a gente nem sabia o que era isso e não se assumia. Também é uma luta contra o êxodo rural”, afirma Leidiane.
Refletir sobre a importância da cultura e da espiritualidade de seus ancestrais é o ponto de partida para a valorização da identidade quilombola na escola. Foto: Fernando Martinho

A virada

A virada dentro da escola começou no início de 2014, quando a então secretária municipal de Educação, Maria Gorethi dos Santos Camelo, prometeu fechar a unidade e transferir todos os estudantes para Soledade – quilombo a 9 quilômetros dali – porque pretendia acabar com as escolas de taipa. Parece perto, mas são ao menos 90 minutos de caminhada. Além de o acesso pela estrada de areia fofa ser complicado, o transporte da prefeitura falha principalmente na temporada de chuva.
Naquele ano, só havia até o 4º ano em Nazaré, e a família de Leidiane e Gil – os Reges – reivindicavam a ampliação até o 9º. Por causa do transtorno de ter de ir a Soledade para continuar os estudos, diversos alunos desistiam ou eram reprovados por faltas. O caso mais emblemático foi o de três meninas que ficavam escondidas na mata pertinho do povoado até dar o horário de voltar da escola porque tinham medo de estranhos que encontram pelo caminho. “Chamamos a secretária para uma reunião na comunidade e ela logo sentiu a dificuldade que é chegar aqui. Gorethi veio de moto e caiu na estrada. Era janeiro e estava tudo cheio d’água”, lembra a diretora Josenilde, de 32 anos, irmã de Leidiane e Gil. “Deixamos claro que ninguém ia levar as nossas crianças [naquelas condições]”.
“Eu já quis sair de Nazaré, mas agora não quero mais. Me sinto bem na escola e perto da minha família”, diz Karliane Kelly Silva, de 14 anos, em sinal de resistência
A família Reges não só impediu o fechamento da escola como implantou o ensino fundamental completo. A maior revolução foi nas aulas de história, onde as lições sobre a África vão muito além das epidemias e da fome. O que norteia o currículo é a reafirmação do orgulho quilombola. Oficinas de tambor remetem à espiritualidade. A tradição das tranças é abordada como questão de identidade e uma forma de resistência. “Tomamos do governo a educação pra ensinar o que é nosso. A educação quilombola é nossa”, defende Leidiane. “A gente viu nessa ação uma forma de trazer a luta pelo território pra escola”. A escola que a secretária Maria Gorethi queria fechar porque era de taipa foi construída com recursos da comunidade de Nazaré; assim como a atual, um grande salão de alvenaria foi erguido pela associação de moradores.
A valorização da cultura de seus ancestrais é conectada ao modo de vida tradicional nas atividades da escola. Foto: Fernando Martinho
Das autoridades de Serrano do Maranhão, os Reges só tiveram auxílio na parte administrativa, para a formalização dos dados de atas, boletins e do Censo Escolar. As professoras deram aula a maior parte de 2014 sem remuneração. “A gente teve coragem de trabalhar de graça porque as crianças não podiam ficar sem estudar”, recorda a matriarca Joana Batista Santos, de 60 anos, conhecida como Ana.
Ainda hoje as dificuldades persistem. Os salários atrasaram novamente e a merenda não chega. Mas as professoras não param. A nova secretária de Educação, Marileide Santos Costa, justifica que o número de alunos da rede municipal cresceu 25% neste ano e a quantidade de classes multisseriadas diminuiu, obrigando assim a aumentar o quadro de professores. De acordo com ela, só há dinheiro para bancar os contracheques dos concursados. É o caso de apenas uma docente, dona Ana, entre as seis que trabalham em Nazaré.
Embora os Reges definam 2014 como o marco das mudanças, eles começaram a despertar nas crianças e nos adolescentes o apreço por suas raízes muito antes. Gil assumiu em 2005 a direção da escola Coronel Dom Carvalho, em Soledade. Lá, iniciou um trabalho de desmistificação das questões ligadas aos negros e à escravidão. Levou tambor de crioula e informações sobre religiões de matriz africana. “Não se falava ainda sobre ser quilombola, mas eu já militava no movimento negro e quis colocar essa discussão porque os livros não contam toda a nossa história”, lembra. As diretrizes curriculares nacionais focadas nessa população só foram aprovadas em 2012.
“Estamos formando quilombolas, porque antes a gente nem sabia o que era isso e não se assumia. Também é uma luta contra o êxodo rural”, afirma a professora Leidiane
Apesar da discordância de parte da comunidade católica de Soledade, o número de alunos dobrou no primeiro ano de Gil à frente da unidade. Inclusive adultos que tinham parado de estudar se sentiram estimulados a voltar. Além do novo projeto pedagógico, o então prefeito Leocádio Olímpio Rodrigues havia atendido a uma reivindicação de dona Ana, inaugurando o segundo ciclo do ensino fundamental.
Dona Ana já era uma professora respeitada na região. Começara a lecionar em Soledade em 1993, em sua própria casa. “A gente tinha uma sala grande. Então, botamos quadro e cadeiras lá”, salienta. “Eles não tinham pra me pagar. Às vezes, me davam um quilo de peixe, uma galinha, e assim ia.”
Embora as mudanças na escola estivessem atraindo mais alunos, o prefeito surpreendeu a comunidade ao tirar Gil da direção e a mãe dele da sala de aula para contratar professores de fora do povoado. “A pressão era tremenda em cima de mim porque eu defendia justamente o contrário, que os professores fossem da comunidade”, observa Gil. “Então, ficavam dizendo que eu estava desvirtuando as coisas; que o que eu estava fazendo não era educação”. Ele e dona Ana deixaram Soledade, mas a experiência acumulada lá foi fundamental para o fortalecimento da escola de Nazaré.

De Nazaré para o Maranhão

“Professor nenhum parava nessa escola antes da Ana chegar, ela é uma pessoa de muita garra. E tudo aqui tem dedo da família dela”, diz Maria José Pinto de Souza, de 65 anos. Quando dona Ana assumiu, em 2000, havia 14 alunos. Hoje são 45. Junto com o salto de estudantes, aumentou de 5 ou 6 para mais de 30 as famílias vivendo no quilombo. Antes muitas eram obrigadas a migrar para o município vizinho, Cururupu, ou para a cidade de Serrano, para que os filhos estudassem.
A briga dos Reges agora é pelo ensino médio. Mas isso não está nos planos do governo. Segundo Gerson Pinheiro, secretário de Igualdade Racial do Maranhão, está previsto só um prédio, com duas salas, onde passará a funcionar o Centro de Ensino Fundamental Nossa Senhora de Nazaré.
Mesmo sem o ensino médio na comunidade, muitas outras crianças e adolescentes poderiam ser beneficiados pelo ensino fundamental de Nazaré se estivesse pronta a estrada prometida pelo Estado, na chamada Rota do Rio das Almas, interligando todas as comunidades quilombolas do território Mariano dos Campos. “Em janeiro de 2017 ganhamos um ônibus escolar, mas ele está servindo a Serrano porque a estrada não chegou aqui”, observa dona Ana. Apesar de todos os obstáculos, os Reges seguem firmes e a experiência deles em sala de aula tem sido bem avaliada.
A implantação do ensino fundamental completo evitou a migração para a cidade ou municípios vizinhos. Em 2000 havia 14 alunos no Quilombo Nazaré, agora são 45. Foto: Fernando Martinho
Depois que a escola virou referência na região, até a prefeitura, que tentou fechar a unidade, afirma agora que planeja replicar o modelo. “O corpo docente de lá é muito bom e tem vivência na questão do território. Isso nos ajudará bastante na proposta de implementar no município as diretrizes curriculares da educação escolar quilombola”, declarou a secretária Marileide à Repórter Brasil. A expansão do modelo não seria pequena, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 94% da população de Serrano do Maranhão é quilombola.
Embora o reconhecimento do Estado seja importante para os alunos terem condições de avançar nos estudos, para Leidiane a maior validação vem da comunidade. “Eu já quis sair de Nazaré, mas agora não quero mais. Me sinto bem na escola e perto da minha família”, diz Karliane Kelly Silva, de 14 anos. No início e no fim das aulas, a professora costuma pedir a proteção de santos, orixás, caboclos e encantados. Estimula a busca pela soberania com orações e cânticos. “Quem dera a gente não dependesse do governo nem para dar o histórico dos alunos”, diz Leidiane. “A luta é pelo território livre, pelo respeito à nossa cultura e espiritualidade.”
Embora estejam bem amparados dentro da escola, fora dela as crianças e os adolescentes da comunidade enfrentam as ameaças do trabalho infantil e análogo ao de escravo. No próximo capítulo, saiba como meninas são levadas para trabalhar sem receber como domésticas nas grandes cidades, enquanto os meninos estão sujeitos à atividade pesada de carregar caminhões de areia dentro do próprio quilombo.
Por: Texto Solange Azevedo
Fonte: Repórter Brasil

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