quinta-feira, 17 de março de 2016

Da lama ao caos: Degradação ambiental ameaça os manguezais do Maranhão

Raiz de mangue preto ou siriba, Praia do Barco, Alcântara, Maranhão. (Foto Ana Mendes/AmReal)
Raiz de mangue preto ou siriba, Praia do Barco, Alcântara, Maranhão. (Foto Ana Mendes/AmReal)
Ecossistema de transição entre terra e mar, o mangue é uma fonte de alimento e renda das populações ribeirinhas, mas crustáceos e moluscos estão desaparecendo por causa das obras públicas e privadas na via costeira. (Foto acima é de Ana Mendes/AmReal)

ANA MENDES, especial para a Amazônia Real
São Luís (MA) – Pergunte a um pescador: como funciona a maré? Faça a mesma pergunta, no dia seguinte, a um marinheiro na Rampa Campos Melo, no centro de São Luís. No outro dia, mais uma vez, insista no assunto com as mulheres na beira da praia pegando siri. Não se aborreça. A resposta nunca será a mesma, cada um explicará ao seu modo. Isso porque o Maranhão tem a segunda maior variação de maré do mundo. E também porque novos fatores veem somar-se à difícil tarefa de calcular as cheias e vazantes: a erosão e sedimentação das florestas de manguezais maranhense por consequência das obras de infraestrutura pública e do setor imobiliário ao longo do litoral maranhense.
Somente olhos muito acostumados não se espantam com o vai e vem de nada menos que cinco metros de água. Existem ao menos duas variáveis naturais que influenciam no complexo cálculo das marés. A primeira é o estágio da lua, a segunda é a época do ano, e, portanto, a inclinação da terra em relação ao sol. É um verdadeiro dilúvio diário e a rotina de diversas atividades depende da precisão do volume de águas.
Mas, recentemente algumas delas estão comprometidas pelo acúmulo de sedimentos onde antes a água fluía. É o caso do Porto do Jacaré, em Alcântara, de onde saem embarcações diariamente em direção a capital, São Luís. Os horários de chegada e partida do transporte fluvial estão sofrendo alteração por conta dos imprevisíveis bancos de areia que se formaram nos últimos anos.
“A erosão e a sedimentação ocorrem naturalmente, principalmente onde tem marés enormes, como é o nosso caso aqui. Mas o problema é que as construções desordenadas aceleram o processo e deixa tudo imprevisível. Quando você começa a erodir uma área o que acontece com esse material que foi erodido? Ele não some, ele vai assorear outro lugar. E começa a entupir. Aí vai entupir uma praia, vai entupir uma boca de rio. Vai criar um banco de areia no meio de um lugar onde antes os pescadores podiam passar de barco”, é o que explica Flávia Rebelo Mochel, coordenadora do Centro de Recuperação de Manguezais (Cermangue) e do Laboratório de Manguezais (Lama) da Universidade Federal do Maranhão (Ufma).

O manguezal é um ecossistema costeiro de transição entre a terra e o mar característico das regiões tropicais e subtropicais. Está sujeito ao regime das marés. Na Amazônia, os estados do Maranhão, Pará e Amapá possuem 50% da cobertura florestal de mangue do país. É a maior área contínua do mundo, denominada pelos pesquisadores como Costa de Manguezais de Macromaré da Amazônia (Cmma).
Só no noroeste do Maranhão são quase 6 mil km² do litoral. Em São Luís, cerca de 50% dessa vegetação já desapareceu por conta de crescimento descontrolado da capital. O depósito de sedimentos, consequência do assoreamento, faz-se sentir nas praias e nos entroncamentos de igarapés e rios em todo o Golfão Maranhense.
O Golfão está localizado no extremo norte do estado e é constituído pelas baías de São José e São Marcos, onde está localizada a ilha de São Luís. Segundo Flávia Mochel, o principal problema é o crescimento desordenado no litoral dessas regiões.
“Aterros para áreas industriais e residenciais; invasões, condomínios e avenidas. Quase toda a malha viária costeira foi feita em cima de duna e mangue, cortando igarapés, subdimensionando os igarapés. Assim cresceu, por exemplo a Lagoa da Jansen. Aquilo era tudo mangue que afogou porque aterraram para fazer duas avenidas”, disse a coordenadora do Cermangue e do Lama da Universidade Federal do Maranhão.

 Um muro separa catadores do mangue

Fanksinatra Freitas é catador de ostras em Raposa, região metropolitana de São Luís. (Foto: Ana Mendes/AmReal)
Fanksinatra Freitas é catador de ostras em Raposa, região metropolitana de São Luís. (Foto: Ana Mendes/AmReal)
Além do transporte fluvial, do qual dependem diversas pessoas, quem começa a ter dificuldades são os pescadores e extrativistas que se veem obrigados a modificar os trajetos para buscar peixes, mariscos e ostras.
Domingos de Souza Carvalho, de 28 anos, cata ostras há cerca de três anos. Recentemente, no manguezal perto de sua casa no Farol de Araçagi, no município de Raposa, região metropolitana de São Luís, um proprietário fechou uma das entradas que dava acesso à área de mangue frequentada por ele e outros ostreiros.
“Ele construiu um muro e deixou avisado que não era para ninguém entrar. Dizem que é juiz”, contou Domingos.
Com essa proibição, os catadores ficaram restritos a retirar ostras somente em uma área naquelas cercanias. Este mangue, menor que o outro, está sofrendo uma sobrecarregada. Na ocasião em que Amazônia Real esteve com Domingos e Franksinatra Freitas, 30, os dois tiveram que pegar ostras em vários locais distantes entre si, caso contrário a quantidade não seria suficiente para as vendas na praia durante o final de semana. Cada ostreiro cata cerca de 40 dúzias de ostra por semana.
Flávia Mochel é pesquisadora da UFMA especializada em recuperação de manguezais. (Foto: Ana Mendes/AmReal)
Flávia Mochel é pesquisadora da UFMA especializada em recuperação de manguezais. (Foto: Ana Mendes/AmReal)
“O pescador que já mora há muitos anos sabe fazer uma leitura de onde vai o sedimento, porque ele começa a perceber onde está quebrando. Mas quando um camarada começa a construir ali, outro começa a construir aqui, ele perde completamente a capacidade de prever. Porque isso não é natural. Isso afeta tudo. A energia que antes se dissipava no mangue vai erodir uma casa, uma via pública, uma calçada”, explica Flávia Mochel, do Cermangue.
O Código Florestal (CF), após a última reforma, incluiu os manguezais em Área de Preservação Permanente (APP). O problema é a aplicação efetiva da legislação para combater a degradação ambiental do ecossistema. Além do CF, o Maranhão conta com a Constituição Estadual, na preservação dos manguezais, e a Federal, que considera a Zona Costeira como patrimônio nacional. O problema é a falta de fiscalização, diz Flávia Mochel.
“O Ministério Público é quem tem mais atuado. Porque quando a fiscalização não acontece e o Ministério Público recebe denúncias, então ele atua, manda perícia e manda recuperar. Antes que o ‘leite fique totalmente derramado’ a gente corre para tentar recuperar alguma coisa. A degradação está solta porque o crescimento urbano e industrial está muito acelerado e a recuperação de áreas degradadas ainda não está estabelecida dentro das legislações. Ainda é uma ferramenta que o Judiciário lança mão, mas não está incorporado como obrigação. Então, nem sempre as empresas recuperam”, disse a coordenadora do Cermangue.

O sumiço de moluscos e crustáceos

Os manguezais são reconhecidamente uma fonte de segurança alimentar para as populações ribeirinhas. Cerca de 70 espécies de peixes vivem pelo menos um terço de seu ciclo de vida no mangue. Lá eles se alimentam e reproduzem. Algumas espécies emblemáticas, em vias de extinção, tal como o mero e o robalo, necessitam das sombras dessa vegetação para sobreviver.
“Na natureza tudo depende de alguma coisa. Se não tivesse as sementes do mangue, o peixe-boi ia ter que sair por aí procurando outra coisa para comer ou ia até morrer”, disse Gabriel Diniz. O menino tem apenas 11 anos, mas aprendeu com o avô a ter amor pelo mangue.
Seu Peó Diniz, avô de Gabriel, tem 67 anos e trabalha como condutor de turistas na cidade histórica de Alcântara, a cerca de 22 km de barco de São Luís. Ele é o guia mais famoso da região. Quem entra na sua canoa ouve histórias de escravos e encantados, os habitantes sobrenaturais do mangue.
“Muitos não conhecem como é a procedência do mangue. Eu conto para eles que o mangue é tão sensível que se você cortar um mangue a lama vai perder oxigênio e vai apodrecer, depois desbarrerar. Muitas pessoas não se importam e cortam. ‘Tô precisando desse pau, vou levar’”, diz Seu Peó.
Notando o sumiço de moluscos e crustáceos, a Superintendência da Pesca e Aquicultura do Estado do Maranhão está auxiliando o cultivo de diversas espécies em pequenos povoados no interior do estado, segundo a Coordenadora de Apoio a Aquicultura, Isabela Neiva Moreira. 
“Já fizemos mais de cem capacitações e um módulo experimental de cultivo de ostra foi colocado em Icatú. Houve uma revitalização de todo o ecossistema, começou a surgir o sururu, peixe pedra, siri. Espécies que há muito tempo não apareciam por ali. Icatu, Primeira Cruz e Humberto de Campos foram definidos como Parques Aquícolas, pelo Ministério da Pesca e Aquicultura junto com a Universidade Federal do Maranhão. E este ano iremos implantar vários tipos de cultivos nesses três municípios”, disse Moreira.
Caranguejo e adereços para catar siri, Comunidade Mamuna, Alcântara, Maranhão. (Foto Ana Mendes/AmReal)
Caranguejo e adereços para catar siri, Comunidade Mamuna, Alcântara, Maranhão. (Foto Ana Mendes/AmReal)

A importância das comunidades tradicionais

Gabriel Diniz, 11 anos, acompanha o avô, Seu Peó, condutor de turistas na cidade de Alcântara, no Maranhão. (Foto: Ana Mendes/AmReal)
Gabriel Diniz, 11 anos, acompanha o avô, Seu Peó, condutor de turistas na cidade de Alcântara, no Maranhão. (Foto: Ana Mendes/AmReal)
Em Mamuna, comunidade quilombola a cerca de 22 km da sede urbana do município de Alcântara, moram cerca de 70 famílias. Diariamente homens e mulheres saem para pegar caranguejos, sururus e ostras. É do mangue que tiram proteína para as refeições cotidianas, que são normalmente, acompanhadas por farinha.
“Vir ao mangue é uma terapia para mim”, diz inesperadamente Militina Garcia, com um sorriso no rosto.
Militina é professora e liderança comunitária. Durante anos a sua comunidade foi ameaçada de remoção pela Força Aérea Brasileira (leia aqui) e por isso, ela sabe o valor dos bens que o mangue conservado e a natureza estupenda ao redor podem proporcionar em termos econômicos, culturais, existências e mesmo espirituais.
Não há dúvidas de que o mangue é importante para as comunidades. Mas, segundo Kátia Barros, coordenadora do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada a Povos e Culturas Tradicionais (CNPT) do Instituto Chico Mendes (ICMBio) no Maranhão, as comunidades também são importantes para o mangue.
“Porque empiricamente a gente já sabe que as grandes extensões de manguezal conservadas no Maranhão não se localizam nos vazios demográficos. Ao contrário, elas estão exatamente onde há pessoas. Eu acho que não os ter [povos tradicionais] lá significaria não ter os principais cuidadores. Porque quem mora cuida. Quem mora sabe que precisa ter aquilo ali para viver, para respirar, para se sustentar”, disse a coordenadora do CNPT.
Com sede em São Luís, o CNPT é o responsável por colocar em prática o Plano de Ação (PAN) Manguezal para todo o país. Kátia Barros disse que, esse plano que ainda está em fase inicial, terá duração de cinco anos e pretende, entre outras coisas, dar conta justamente de mapear a contribuição das populações tradicionais para esse ecossistema.
“Há uma ideia pré-concebida de que as comunidades não querem ter área de reprodução, pelo contrário, o que a gente chama de ‘área de exclusão’ eles chamam de área de reprodução porque entendem que ali irão se reproduzir algumas espécies e isso vai melhorar o manguezal. Há ações que não são sustentáveis? Claro, a retirada de mangue para fazer cerca e canoa, por exemplo. Mas a junção dos saberes científico e tradicional pode contribuir para que essas coisas que são insustentáveis passem a ser sustentáveis, mas para isso temos que produzir conhecimento. Não dá para pensar no extremo, pensar que Unidade de Conservação só vai poder efetivamente conservar se não houver gente. E o contrário também não”, disse Kátia Barros. 

A cultura e a estética dos manguezais

Na avenida Quarto Centenário a obra incompleta do PAC,  que aterrou o manguezal as margens do Rio Anil, São Luís. (Foto Ana Mendes/AmReal)
Na avenida Quarto Centenário a obra incompleta do PAC, que aterrou o manguezal as margens do Rio Anil, São Luís. (Foto Ana Mendes/AmReal)
Desmatamento, erosão acelerada, especulação imobiliária e obras públicas. Ações humanas que colocam em primeiro lugar o chamado desenvolvimento sem medir as consequências ambientais. Esse é um roteiro de degradação já bastante conhecido. Mas em relação ao mangue há um agravante de cunho cultural. É o sentimento de desprezo e nojo, que prevaleceu por décadas, em relação a lama. A encharcada floresta de manguezais já foi associada a doenças, a sujeira e a pobreza. Muito lentamente esse estigma vai se dissipando. 
Ajudou a popularizar o estilo mangue de viver as músicas do cantor e compositor pernambucano Chico Science (1966-1997), criador do movimento manguebeat nos anos 90. É nesse mesmo caminho, o da arte, que o cineasta e jornalista maranhense Cláudio Farias explora a estética do mangue. Aficionado pelas texturas, cores e volumes, ele soma forças contra a estigmatização dos manguezais. Há cerca de seis anos, ele vive na cidade de Alcântara com o mar batendo a porta e quando a maré baixa.
 Floresta de Manguezal às margens do Igarapé do Puca, Alcântara, Maranhão. (Foto Ana Mendes/AmReal)
Floresta de Manguezal às margens do Igarapé do Puca, Alcântara, Maranhão. (Foto Ana Mendes/AmReal)
Cláudio e seu parceiro de trabalho, o diretor de fotografia Paulo do Vale, saem para capturar imagens. Para os dois, o inventário não tem fim: brotinhos, raízes, líquens, crustáceos e claro, lama, tudo filmado, fotografado e descrito em roteiros de documentários, alguns inéditos.
 “O estado do Maranhão tem uma das maiores áreas costeiras de manguezais, mas parece que ninguém sabe, ninguém viu”, diz Cláudio Farias. 
A previsão de Cláudio é lançar o filme “Mundo Mangue” ainda este ano. O documentário contará em vários capítulos as belezas desse ecossistema. “Alguma coisa deve ser feita. Uma gota no oceano, pode fazer uma onda”.
Uma dessas gotas é o trabalho de recuperação de manguezais do grupo Cermangue/Lama de Flávia Mochel. Ela e sua equipe já recuperaram três manguezais a partir de um método que denominam Ecologia da Recuperação, que consiste em entender a fisiologia específica de cada área e corrigir a sua salinidade. Utilizando-se de pesquisas científicas ela chegou uma técnica de trabalho, que pode durar até seis anos em cada área, onde a principal ação é aguar.
Mochel literalmente rega o mangue. Ora com água doce, ora com água salgada, dependendo da necessidade. Sendo assim, a probabilidade de o mangue em recuperação morrer é quase zero.
“Na época da seca ele está cheio de sal, então jogamos água doce. O mangue gosta. Aí na época da chuva o mangue fica doce demais. O que a gente faz? Pegamos água da maré! Desse modo espantamos todos os possíveis predadores. É assim, eu escuto a linguagem dele. Ele me ensina”, diz Flávia Mochel, coordenadora do Cermangue e do Lama da Universidade Federal do Maranhão.

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VIDA NO MANGUE

VIDA NO MANGUE
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Ao fundo, Seu Peó, condutor de turistas em Alcântara, Maranhão. (Foto: Ana Mendes/AmReal)

Esta reportagem especial faz parte da segunda fase do projeto “Amazônia Real – promovendo a democratização e liberdade de expressão na região amazônica” e recebe financiamento da Fundação Ford, por meio do programa “Promovendo Direitos e Acesso à Mídia”.

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